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12/11/2018

Transcritos aleatórios 5

O Brasil lidera o assassinato de ativistas ambientais, carentes de apoio popular e político, que ficam às margens de um intenso lobby do agronegócio, afrouxando a legislação sobre agrotóxicos, desmatamento ilegal, mineração, pesca e caça em áreas protegidas, extinção de reservas ambientais; além das ameaças de Bolsonaro ao Ibama e ICMBio por serem apenas uma "indústria da multa", da hostilização de terra indígena, e da saída do Acordo de Paris e da fusão (até agora ideias que foram abandonadas) do Ministério do Meio Ambiente com o da Agricultura. Ministérios esses que um será comandado por um réu por improbidade administrativa e o outro por uma deputada apelidada de "Musa do Veneno", que juntos fazem a alegria de ruralistas.

Uma agenda ambiental, que use a ciência e a tecnologia para práticas mais sustentáveis, precisa ser prioritária em um planeta que já sofre significativos efeitos do aquecimento global, com o incentivo à agrossilvicultura, corredores ecológicos, OGMs, ampliação da matriz energética solar e das áreas de proteção ambiental, redução dos subsídios à combustíveis fósseis, entre outras. Não é só questão de proteger o meio ambiente. É benéfico para o comércio, desenvolvimento industrial, saúde, turismo, emprego, bem estar.

O desmatamento da Amazônia se aproxima do irreversível na recuperação do seu bioma, com impactos catastróficos não só na biodiversidade, mas também na agricultura e economia do país, que entrariam em colapso. A floresta é a principal responsável pelo ciclo hidrológico de São Paulo, e seu clima extremo, a falta de chuvas e a seca das represas são consequências importantes da destruição da floresta amazônica, e se ela não existisse a cidade inteira estaria hoje sob um deserto.

Mas isso tudo não interessa em nada ao novo governo, que tem como chanceler um lunático que acredita que tudo isso não passa de dogmatismo. Essa é uma bela receita rumo à um desastre ecológico e econômico. O Brasil pode sofrer secas severas, impactos desastrosos no meio ambiente, sanções internacionais para a exportação de seus commodities, e assim o comércio nacional desabar e todo o país sofrer uma enorme crise.

Tem certeza que não vamos virar uma Venezuela? Se você votou nesse novo governo, é melhor já ir cobrando seu candidato a abraçar pautas ambientalistas e de desenvolvimento sustentável.

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Uma sociedade cientificamente letrada se demonstra mais urgente do que nunca quando se presencia uma era da "informação" tão catastrófica em termos de credibilidade e qualidade. A facilidade e rapidez da comunicação exacerbou suas piores facetas, hoje dominada por debates supérfluos, fake news, manipulações, agressões verbais ou físicas, sensacionalismos e bolhas sociais, sendo estes os sintomas da falência educacional de um povo crédulo, analfabeto científico e desprovido de criticismo. Um instinto primitivo e irracional apossou-se desse país.

Ciência não é só remédios, dinossauros, drogas, bombas, planetas, lei da gravidade e foguetes espaciais. É também uma mentalidade a ser empregada, uma perspectiva filosófica de vida. Aplicar o método científico é saber identificar os maus argumentos e os bons, de ficar atento ás falácias, vieses cognitivos, falhas de raciocínio, do agir por impulso e emoção, de reconhecer que nosso cérebro primata é falho e pode sempre ser enganado. Aplicar o método científico diariamente é carregar consigo uma tocha de ceticismo, uma postura racional, crítica e intelectual, mas também humilde, em reconhecer não ter certeza quando não se tem, de assumir a própria ignorância, de estar sempre disposto a pesquisar mais através de fontes confiáveis, e também de estar a par de sua própria falibilidade e sugestionabilidade, da tentação ao auto engano, de aceitar qualquer coisa como verdade porque quer acreditar, de reconhecer e rejeitar pseudociência, notícias falsas ou tendenciosas, conspirações, ciências questionáveis e superstições. De condenar picaretas e charlatões que tentam nos enganar com terapias alternativas ou teorias mirabolantes supostamente irrefutáveis. De enxergar a vida de forma secular, sem apelo ao desconhecido e ao irracionalismo. De não relativizar o conhecimento cientificamente embasado, criando seus próprios fatos à maneira que bem entender.

O método científico não é dogmático, e pode ser falível, mas está sempre se questionando, observando e aceitando, aprimorando e corrigindo novas ideias conforme o acúmulo de evidências e argumentos bons e aceitáveis que a suportem. O que pode ser afirmado sem evidência pode ser rejeitado sem evidência, e o que se afirma ser "além da capacidade de verificação pela ciência" também podem ser no mínimo questionável ou descartado.

30/09/2018

Sobre o inominável

Todos estamos inseguros, com medo e cansados da violência, da velha política, da instabilidade social e econômica.

E, mesmo assim Bolsonaro, João Dória, Haddad (no lugar de Lula), Aécio e Dilma lideram nas pesquisas. Piora quando lemos: "No estado de São Paulo, os mais votados (para Deputado Federal) em 2018 devem ser Tiririca, Marco Feliciano, Eduardo Bolsonaro, Celso Russomanno e Kim Kataguiri"

Que revolta é essa, que se transformou em uma condescendência alienada ao votar nos mesmos velhos políticos ou em retrógrados que prometem "mudar tudo isso", mas que carregam consigo uma bandeira de ódio, conservadorismo e ignorância?

Nesse clima de indignação, Bolsonaro encarnou o papel de um herói, prometendo respostas mágicas para um povo desamparado, cansado do PT, da roubalheira e da ineficiência estatal, e que viu nele o portador de ares novos para a política. Nessa mesma mentalidade que Dória foi eleito, e hoje sabemos a farsa que ele é. Ou será que Bolsonaro vai mudar tudo isso? Eu não vejo nenhum motivo razoável para ter essa esperança. Bolsonaro tem, em sua carreira política, se mostrado bem fiel à manutenção do status quo e do establishment político, com um longo histórico corporativista e militarista. Por que seria diferente com ele presidente, ainda mais sofrendo tamanha rejeição e oposição (e não sem motivos)? Isso poderia ser certamente um forte impedimento à suas pautas, embora o Congresso, com sua dominância conservadora, pode facilmente se aliar ao seu governo. Não sei o que é mais assombroso.

É problemático (para dizer no mínimo), em primeiro lugar, suas declarações e atitudes explicitamente intolerantes, preconceituosas e ignorantes em relação à índios, imigrantes, gays, mulheres, negros e outras minorias. Ou suas exaltações à ditadura e seus torturadores - ignorando um período totalmente obscuro na história do país, com altos índices de inflação, violência, corrupção, desigualdade e evasão escolar (irrefutável evidência de que militares no poder não são prova nenhuma de nobreza e boa gestão estatal). No entanto, seus apoiadores sem problema nenhum relevam, negam ou, pior ainda, até mesmo concordam com tudo isso. Porém, apoiá-lo é também ignorar o seu evidente despreparo para assuntos importantes como economia, políticas internacionais, saúde, segurança pública e educação. Ele facilmente derrapa em questões básicas sobre esses assuntos, ou joga nas costas de seu ministro da economia, que mesmo que fosse o mais brilhante do mundo (não é), sozinho esse ministro não é capaz de fazer nada sem um presidente que não tenha conhecimento, experiência, articulação e jogo de cintura; que saiba fazer acordos e ter poder de influência no Congresso. Ele ter só 3 projetos aprovados (nenhum desses sendo de segurança pública, uma de suas principais pautas) em 27 anos como deputado federal talvez seja uma amostragem importante sobre sua expressividade e importância política. Nada garante que com ele na Presidência seria diferente.

Com um discurso totalmente raso e desconexo, ele consegue ser totalmente superficial em todas as suas propostas, com soluções simples e imediatistas para problemas graves, porém profundos e de múltiplas causalidades. Ser a favor da educação a distância para "combater o marxismo"? Os alunos saem da escola e mal aprendem a interpretar um texto. Sua posição a favor do armamento é uma política simplista totalmente infundada, uma proposta para resolver um problema estruturalmente complexo que envolve diversas variáveis socioeconômicas e educacionais. Aliado a isso, há a proposta da carta branca pra polícia matar sem culpabilização (apesar de já termos uma das instituições policiais que mais mata no mundo), receita perfeita para o desastre. Para combater o desemprego, ele defende menos direitos trabalhistas, além de ser contra a igualdade salarial de gênero e a favor da diminuição da licença maternidade, o que soa no mínimo ultrajante para um país cujas condições de trabalho já podem ser abusivas ou até análogas à escravidão. No seu oportunismo latente, abraçou o liberalismo econômico como forma de agradar ao mercado, embora ainda seja contra taxação de grandes fortunas e heranças, no mínimo tornando questionável que seu governo será destinado às massas mais pobres. Em relação ao meio ambiente, sua defesa de fusão dos Ministérios da Agricultura com o do Meio Ambiente é uma clara afronta ao ambientalismo e à conservação dos biomas brasileiros, já claramente em perigo e que poderão sofrer ainda mais nas mãos do lobby agropecuário, causando mais desmatamento, mais extinções, e mais impacto ambiental em grande escala (não obstante a isso, Bolsonaro também defende a irresponsável saída do Brasil do Acordo de Paris). O projeto de desenvolvimento nacional, quando inexistente ou vago, é no mínimo questionável ou duvidoso; seu plano de governo não tem sequer uma aprofundamento palpável para questões importantes, muitas vezes se atendo à espantalhos anti-Foro de São Paulo (e o usando inexplicavelmente como correlação para ter ocorrido mais 1 milhão de assassinatos desde sua fundação), anti-PT e anti-Marxismo. O perigo já foi amplamente difundido de Bolsonaro não representar a nova política, e sim um reacionarismo conservador, sendo ele e seu problemático plano de governo já escrachado até por veículos internacionais de renome como The Economist, Washington Post e The Guardian. Esse receio piora pela sua persona autoritária que flerta com o fascismo, cultuando as Forças Armadas, a hierarquia de poder, o nacionalismo exacerbado, condenando o pacifismo, a modernidade e o inimigo como algo a ser combatido pela guerra; usando de oratória simplória com apelos ao medo, ao uso da força; criando um clima de incerteza, sobretudo às minorias e aos moderados (estes ainda sendo acusados de vitimistas e de "isentões"), amedrontados de serem ainda mais marginalizadas e perseguidas por aqueles que o apoiem (incluindo grupos neonazistas), vendo na figura de seu "líder" um incentivo moral aos preconceitos destilados por ele.

Todo seu passado político o contradiz: por já ter sido aliado do PMDB e do PT em diversas pautas econômicas (seu "liberalismo" só surgiu recentemente), a favor de privilégios políticos, de guerra civil para mudar o país, além de supostamente ter feito lavagem de dinheiro pelo partido através de doação da JBS; de já ter confessado sua indisciplina quando servia no Exército; por já ter empregado funcionária fantasma com verba de seu gabinete; por declarar que usava auxílio-moradia pra "comer gente"; por se declarar um fiel cristão e pregar o ódio e a relativização do estupro; de se declarar patriota mas bater contingência para os EUA e defender entregar a Amazônia para eles; de ter votado contra o Plano Real, da proibição do nepotismo e do teto salarial no setor público, do fundo do combate à pobreza, além de, pasmem, já ter inclusive elogiado e apoiado a candidatura de Ciro Gomes em 2002 à presidência.

Atualmente, no entanto, Bolsonaro se aproveitou do intenso antipetismo e da credulidade para instigar o medo com seu tom militarista e intimidador, propagando ameaças invisíveis de um fantasma comunista inexistente, de um suposto kit gay e ideologia de gênero, e outros boatos que inventa ou perpetua (mas fake news é só quando é sobre ele). E agora lidera nas intenções de voto.

Tenho seríssimas dúvidas sobre ele ser minimamente defensável, e não vejo como ele vai diminuir a violência, a corrupção, o desemprego, ou melhorar a educação e muito menos como vai salvar a economia do país. Mas quem o apoia parece não estar ciente do seu questionável preparo e coerência ideológica e política, ou se cega à tudo isso, comprando ideias e conclusões absurdas pra suportar um raciocínio insustentável a seu favor, entre eles: "Ahh pelo o menos ele é ficha limpa", sendo que não é o único, e nem de longe esse é o único requisito para um candidato. "Pelo o menos ele vai acabar com a roubalheira", sobre esse mesmo candidato que foi aliado do PMDB a carreira toda e chamou Eduardo Cunha de herói, que hoje está preso. "OK, mas ele tem pulso firme e pelo o menos vai tentar salvar o Brasil", essa ideia deveria ser encarada com muito ceticismo, vindo de um deputado federal de carreira eleito pelo Rio de Janeiro, cujos resultados para combater a violência e a corrupção não têm sido sequer dignos de nota, além de outros motivos já apontados nesse texto. "Aaa mas ninguém mais aguenta o PT, vamos dar uma chance pra ele", que pra mim soa mais como uma tentativa ingênua e perigosa de brincar com o fogo, jogando o futuro de um país nas mãos de um candidato que mal consegue entrar em acordo com seu próprio vice (este com falas igualmente ou ainda mais chocantes), que demonstra total desrespeito à diversidade do ser humano, que não conhece seu próprio plano de governo, entrando em desavenças até com seu ministro de economia.

Óbvio que a rejeição do PT é enorme e sua volta ao poder é inaceitável, porém agora com Haddad em segundo lugar nas intenções de voto colocamos o país como refém e a população de mãos atadas. Na atual conjuntura, o ideal seriam candidatos conciliadores, que saibam apaziguar esse clima incerto, que tenham um projeto nacional estruturado e bem estudado, no caso de Marina Silva ou Ciro Gomes (embora obviamente eles não sejam perfeitos, mas que possuem uma longa e notável carreira política). No entanto, esse tipo de conduta não atrai o brasileiro médio, indignado e cansado. O pobre, trabalhador, quer chegar em casa com comida, sem ser assaltado, sem ficar cansado todo dia diante de tanta desigualdade e injustiça. O Bolsonaro, com seu populismo de direita, é um prato cheio para esse sentimento de desolação, com seus discursos inflamados e "lacradores a la direita" que conquistaram a simpatia do cidadão comum, que não tem nenhum interesse pelas pautas LGBTI, pela legalização da maconha ou do aborto, quando não consegue pagar o transporte escolar do filho para a escola ou que não ser roubado quando acabou de comprar um celular novo. O cidadão comum, que mora na periferia e convive diariamente com o crime, não se importa se seu candidato é machista, homofóbico e intolerante. Ele quer um presidente que o ajude a pagar as contas, a comprar remédios e que combata a violência. Nesse cenário, a oposição de Bolsonaro não pode se resumir a chamar seus apoiadores de fascistas e de associa-lo à todas as malezas imperdoáveis. Óbvio que existem aqueles que declaram seu voto nele puramente por preconceito, ignorância, ou por flertar com o fascismo, além de outros motivos execráveis que devem também ser combatidos. Mas não é só isso. Ele tem que ser criticado em todas as suas facetas, e de todo o perigo e risco que ele representa, em todas as esferas sociais, políticas e econômicas. Os motivos de suas propostas serem questionáveis ou inaceitáveis, e quais seriam melhores alternativas e por quê. Que Direitos Humanos não é pra defender bandido, defender o direito à moradia não é invasão de propriedade privada, Bolsa Família não é esmola, desmilitarização da polícia é oferecer melhores condições de trabalho para o policial, que racismo não é vitimismo, que intervenção estatal na economia não é socialismo. É compreensível a falta de paciência em ter que argumentar em um debate de baixo nível, com alguém que se recusa a entender. No entanto, essa crítica irresponsável por parte de seus opositores parcialmente ajudou sua ascensão.

O Brasil, se rendendo à uma polarização hostil, não pode sucumbir à extremismos perigosos, seja do PT que almeja ensandecidamente recuperar seu trono do poder, ou do culto ao ódio e a intolerância propagados de um pretenso militarista conservador. Infelizmente, é o que está acontecendo, e Bolsonaro está na iminência da presidência, cobrindo com uma camada de véu ainda mais escura o futuro do país. E mesmo os mais fortes argumentos, fatos e dados são ignorados ao ouvido de seu apoiador cego. Aqueles que acabam caindo na armadilha enviesada de enaltecer seu candidato, usam os mesmos silogismos falaciosos para atacar candidatos adversários. E nesse esforço em tentar defendê-lo, as mais absurdas desculpas e malabarismos lógicos são criados para sustentar uma conclusão cujas premissas não a suportam: a de que Bolsonaro precisa ser presidente. O viés se torna tão forte que a realidade, o ceticismo e o senso crítico são jogados pela janela, tudo isso em prol de uma esperança confortável depositada nas promessas vazias de um suposto salvador da pátria.

06/08/2018

O lado oculto de Xuihoctl

 Nos confins de uma galáxia extremamente longínqua, o planeta Xuihoctl orbita uma débil e tímida anã vermelha chamada Nhgasuz, estrela de pequena massa e tamanho muito reduzido.

A mesma face de Xuihoctl está sempre virada para Nhgasuz enquanto a orbita, devido à sua proximidade com a estrela. Assim, esse lado é incessantemente bombardeado pela cataclísmica emissão eletromagnética de Nhgasuz, condenando-o a uma eterna e brilhante fornalha estéril e desolada. Contrastante a isso, o lado oposto do planeta é envolto em perpétua escuridão, nunca jamais tendo sido agraciado pela luz forjada na serena nucleossíntese da anã vermelha. O lado oculto de Xuihoctl é igualmente desolado, abandonado em uma cegueira hedionda que recebe apenas o abraço penumbral de um firmamento inacabável, onde estrelas não brilham. Isso se deve ao fato do planeta ocupar uma posição peculiar nas moradas de sua galáxia.

 O sistema de Nhgasuz habita recônditos remotos e segredados da borda de sua galáxia, logo antes dela se dispersar em um insondável oceano de eterna solidão cósmica sem estrelas. Esse sistema pode ser considerado o último da galáxia, o vizinho estelar mais longínquo. Pode-se concluir também que essa estrela e seus planetas são os vizinhos mais próximos do vazio e incalculável abismo do cosmos entre o fim de uma galáxia e o início da próxima.

 Isso não é tudo. A órbita de Xuihoctl ao redor da estrela é praticamente vertical em relação ao plano galáctico. O eixo de rotação do planeta também é extremamente inclinado, fazendo com que ele orbite Nhgasuz deitado, de forma parecida à Urano. Isso resulta com que seu macabro lado oculto jamais contenha um céu para que, de sua superfície, sejam avistados os acenos de outros corpos siderais intragalaticos além, com exceção dos raros e fantasmagóricos brilhos de luzes estelares distantes nas extremidades horizontais, que não são capazes de iluminar a noite eterna desse anômalo lado oculto de Xuihoctl.

 Xuihoctl não tem lua, e não se conhece outros planetas em seu sistema. A estrela vizinha mais próxima talvez ronde há mais de 230 anos luz. O planeta tem uma estrela só pra si, e os dois erram solitários pelas bordas externas da galáxia, mais rápidos que qualquer outra estrela.

 Na vasta extensão probabilística de um interminável universo, há de se imaginar a mais exótica das configurações possíveis para a existência de um objeto celestial, com as mais excêntricas características. Nenhuma mente sadia jamais ousou conceder, contudo, a inexplicável e horrenda existência de Xuihoctl e suas peculiares características físicas.

 Até a descoberta desse corpo rochoso amaldiçoado foi de natureza estapafúrdia, uma vez que ele não foi descoberto de modo algum. Sua existência foi revelada de modo abrupto, capturada por telescópios que recebiam mensagens anormais vindas de sua direção, como um sistema que explode de repente com vida inteligente e implora por contato. Toda uma exaltação criada em torno dessa descoberta fantástica para descobrirmos, afinal, que sabemos menos do que imaginávamos. Uma luz misteriosa brilhou de forma breve em todo o espectro de emissão eletromagnética, vindo desse sistema anormal.

 Logo em seguida à esse esquisito evento, visões foram relatadas em pessoas ao redor de toda a Terra, descrevendo o caos instalado sob toda a superfície global de um planeta longínquo. O cenário era de um âmbar amarronzado obscuro, envolto em uma negritude total, apenas escassamente iluminado por uma débil estrela avermelhada. As imagens eram difusas, não se tinha uma perspectiva geral do contexto daquelas visões. O panorama era envolto em um insondável mistério, como se abraçado por uma intangível e nefasta entidade celestial, cuja constituição fora forjada nas brumas de uma malignidade cósmica. Uma extensa miríade grotesca de criaturas rastejantes foram relatadas, que propiciavam à essas alucinações visuais uma categoria além da simples esquisitice. Nessas mesmas epifanias também estavam incluídas paisagens cavernosas e desoladas, pertencentes à um mundo totalmente desconhecido, porém que tinha nome, assim como sua estrela. Quem os nomeou, não se sabe.

 Com os sinais captados pelo telescópio e os relatos, a suspeita era forte de que os dois eventos estavam conectados. O sistema de Nhgasuz foi alvo de tamanha atenção que observá-lo apenas por telescópios não era o suficiente. Em um ato que talvez tenha sido um erro indescritível da exploração espacial, sondas foram pra lá enviadas a fim de conhecer de perto esse estranho sistema, excêntrico e bizarro em toda a sua magnitude e que, além disso, transmitia de alguma forma suas paisagens assombrosas para a mente de pessoas aleatórias ao redor da Terra

 A realidade das visões relatadas foi confirmada pelas sondas quando lá pousaram alguns anos depois, nas áreas debilmente iluminadas pela estrela. Assim que as imagens foram transmitidas para a Terra, as primeiras a serem mostradas foram às pessoas que tiveram as visões. Todas entraram em um estado cacofônico de extrema insânia, como se a confirmação de suas visões engatilhasse uma faísca de delírio irrecuperável. As visões difusas de repente materializaram-se em uma fotografia repleta de contraste e nitidez, relevando todo o assombro e o pânico. Nenhuma dessas pessoas jamais voltou a respirar sem a ajuda de aparelhos.

 Aos demais desafortunados que puseram seus olhos nas imagens capturadas pelas sondas, apenas restam-nos torcer que algum dia se recuperem do desequilíbrio atordoador que os catapultou para fora de suas órbitas de sanidade, como um planeta errante que não gira ao redor de nenhuma estrela e não pertence à nenhuma galáxia. Quanto ao resto de nós, apenas esperamos que a nossa imaginação do terror, descrito por quem avistou a bizarria cósmica que emana daquele planeta, não seja o suficiente para que perdemos o controle de nossas faculdades mentais igual àqueles que avistaram a face de Xuihoctl.

 O que eles viram é em vão tentar descrever, uma vez que no ataque psicótico de suas pirações eternas e condenatórias ao total espanto, quase nenhum sobrou para que pudesse voltar ao cerne de suas almas e pintar para nós, de maneira confiável, o que foi registrado nas imagens. Aqueles que tentaram relatar caíram em um abismo ainda mais profundo de loucura, como se sugados por olhos negros abissais que espreitavam nas paredes cósmicas daquelas imagens misteriosas.

 Não se sabe como e nem por que houve esse repentino detectar simultâneo pelos telescópios da existência de Xuihoctl, seguido de visões ao redor do planeta inteiro. Especula-se uma força oculta por trás das bramas que compõem o tecido do espaço-tempo, que fabrica as propriedades do campo quântico cujos mistérios ainda mal compreendemos. Em nossa suprema ignorância, a nefastidão horrenda desse sistema pode ser apenas uma propriedade cósmica que ainda não tenhamos capacidade de vislumbrar. Ou, no recôndito abissal de nossos mais terríveis pesadelos, existam entidades que ajam alheias aos nosso delírios e receios, que consomem a energia do campo cósmico em suas fúrias aterrorizantes, cujas propriedades é impossível até de se teorizar.

 Talvez Xuihoctl seja a profana encarnação do próprio inferno, onde de acordo com os relatos, na escuridão perpétua de seu lado obscuro, emanações piroclásticas condenam à negritude daquele lugar medíocre à mais plena falta de misericórdia, onde seres rastejantes e reptiliformes trazem o horror e o caos à mente de quem os observa, aparentemente criados por deuses profanos com um distorcido senso de humor. A natureza desse sistema planetário é um mistério. O que propiciou o desenvolvimento dessas criaturas desgraçadas, condenadas eternamente a um tormento maldito, execradas de uma luz divina que a concedessem a glória de uma vida digna?

O sádico criador, se é que alguém pudesse ter tido a audácia e a malícia de conceder tal planeta, teria um senso de humor tão sórdido assim, agraciando-o com climas de natureza cataclísmica e inefável, castigando as almas soturnas daquele mundo maldito? Xuihoctl talvez fora uma conjuração metacosmica, sublimemente se apresentando como uma aberração planetária com seu show sinistro, construído pelas energias maléficas de um caos astronômico. Logo antes de uma vítima cair em um acesso espasmódico de gritos e pânico generalizado, seu relato incluía seres humanóides andando sem rumo naquelas terras longevas, com o semblante impresso em suas faces do mais puro desespero e desalento, como crianças buscando refúgio em um purgatório desalmado. Espécimes que se assemelhavam à humanos que já viveram, como se reencarnassem naquele planeta, condenados à rastejar como moribundos. Seres com a expressão de um completo sofrimento, de olhos totalmente escuros, como uma adaptação evolutiva para absorver o máximo possível da fraca claridade. Toda a sórdida forma de vida respirava naquela faixa debilmente iluminada do planeta, na transição entre a fornalha brilhosa da face sempre iluminada pela estrela e o lado eternamente enegrecido pela noite.

 Não se sabe mais nada a respeito do sistema de Nhgasuz, nem como ele surgiu, há quantos bilhões de anos existe, como aquelas exóticas formas de vida desenvolveram-se, nem o que significou todas essas visões. Seria um chamado? Um alerta? Um efeito quântico ainda desconhecido? A sonda perdeu contato após essas transmissões, por motivos misteriosos. As fotos sumiram. Não é possível confirmar a confiabilidade dos poucos relatos obtidos através das visões e das fotos. Mas o efeito do que foi mostrado desse planeta é real. Um pandemônio caótico se instalou na mente de quem teve seus olhos voltados para esse lugar herético. Após esses episódios de insânia, da qual um cético leitor custaria a acreditar, os telescópios não conseguiram mais detectar o planeta em nenhuma faixa do espectro eletromagnético, e tampouco sua estrela.

 Nenhum sistema planetário simplesmente desaparece sem deixar vestígios. Nenhuma nuvem molecular densa e escura tampouco foi detectada para que houvessem bloqueios na visualização do sistema pelos telescópios. Não se sabe o que aconteceu. Nenhuma explosão nas redondezas foi detectada. Esse súbito desaparecimento adiciona uma camada de mistério que ainda permanece indecifrável, arrepiando e amedrontando os sonhos até dos mais destemidos cosmólogos e astrofísicos do mundo inteiro.

 Nenhuma alucinação ou breves explosões de luz novas vindos deste sistema ocorreram desde então. No entanto, é de forte suspeita que o blasfemo sistema de Nhgasuz ainda exista de alguma forma, em algum lugar, viajando pelas bordas externas de sua galáxia em uma órbita solitária, carregando consigo seus pesadelos heréticos, suas respostas indecifráveis, a esgueirar cegamente na espreita infinita desse vasto universo de mistérios indizíveis.

 Anãs vermelhas são conhecidas por suas vidas tempestuosas. Por mais fracas e imperceptíveis que sejam na imaculada grandeza do universo, são instáveis e turbulentas, alternando entre longos períodos imperturbáveis e estrondos espontâneos de massa estelar, gerando ondas de calor insuportáveis em seu perímetro. Nos resta torcer e rezar, sob o conhecimento da existência desse hediondo sistema solar e seus planetas, para que a benevolência cósmica faça que Nhgasuz, sendo uma anã vermelha, expurgue em todo o seu esplendor uma apocaliptica ejeção destrutiva de energia e morte para o infame planeta.

 Xuihoctl foi apenas o primeiro planeta a ter sido testemunhado pela humanidade, que tomou conhecimento das carnais profanações a rastejar por sua superfície. Nenhuma alma plena de sua sanidade ousará imaginar se um dia Nghasuz voltará a se revelar novamente para nós, descortinando-se de seu véu de negritude e indetectabilidade para seduzir-nos novamente com seus convites sedutores à loucura e ao terror de seus enigmas e sua incógnita existência. Na vasta extensão probabilística de um interminável universo, nenhuma mente sadia tampouco jamais ousará conceder, neste amaldiçoado universo sem fim, se haverá mais destes a serem descobertos.

26/05/2018

Transcritos aleatórios 4

Cachorro é uma criatura maravilhosa. Eu acho que cães deviam comandar o mundo. Seria um lugar bem melhor. Você nunca ia ver um cachorro chegar em casa bêbado e espancar o filho, ou um regime autoritário de cães tiranos que matam milhões de cachorrinhos inocentes. Isso nunca ia acontecer. Humanos poderiam desaparecer pra sempre. Talvez os cães sentissem saudades no começo, mas eles iam superar conforme as gerações, se adaptarem, talvez inventar a agricultura. Os gatos, mais provavelmente, continuariam pouco se fodendo. Em duas ou 3 gerações eles já teriam quebrado todos os móveis do mundo. Os porcos, que Deus proteja os cães, seria melhor continuarem longe de A Revolução dos Bichos. Eles poderiam começar a ter ideias.

***

A única coisa que eu gosto do calor é que ele me obriga a beber mais cerveja. Por outro lado, isso faz a cerveja acabar mais rápido. Bem, nem tudo é perfeito.

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Transporte público me permite julgar todo mundo em silêncio. Eu posso ser o pior tipo de pessoa possível. Alguém senta do meu lado e eu penso: "Puta merda, como você é feio!" e saio ileso. Alguém meio acima do peso me pede licença pra passar e eu só falo comigo mesmo "não tem espaço pra você não, seu gordo do caralho", enquanto tento educadamente sair do caminho. É tão divertido!

***

Abaixo está a lista oficial das músicas que tocarão no meu funeral. Elas serão muitas, então seria mais prático fazer uma festa de comemoração à minha partida. Seria bem mais interessante - uma pena que eu não poderei ir, embora essa lista esteja cheia de canções deprimentes. Sim, eu quero que vocês todos sofram! À lista:
 Nina Simone - Stars
 Tommy Emmanuel - Halfway Home
 Fletwood Mac - You Make Loving Fun
 The Moody Blues - Nights In White Satin
 Tim Maia - Gostava tanto de você
 Johnny Cash - We'll Meet Again
 Black Sabbath - Fluff
 Queen - The Show Must Go On
 Bathory - Ring Of Gold
 Rainbow - Catch The Rainbow
 David Bowie - Lazarus
 Creedence - Who'll Stop The Rain
 Frank Sinatra - My Way
 O Peso - Não Fique Triste

 E todas as musicas tristes do Chaves.

 Adendo importante: Não quero enterro, não quero ser cremado. Quero que todos os meus órgãos (os que não foram estragados pelo álcool) sejam doados e o resto de meu corpo enterrado debaixo da terra, sem caixão, usando alguma técnica para que meu corpo seja usado como nutrientes para o solo e para o crescimento de árvores, assim como meu corpo se alimentou dos nutrientes do solo a vida inteira. Grato.

29/04/2018

Transcritos aleatórios 3

O problema da humanidade é que os inteligentes preferem não ter filhos enquanto a paternidade é delegada aos idiotas.

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Legalização do porte de armas é sempre defendido por homens que querem se sentir mais machos por terem uma arma, mascarando esse desejo de "liberdade individual". É um apelo desesperado de uma sociedade cujo sistema está falido e/ou o Estado é omisso e negligente diante de um cenário de violência e desigualdade social. Uma arma, com o objetivo de ferir ou matar, em nome da liberdade. Que lindo, não é? Mas é claro que a polícia pode ser ausente, corrupta, ineficiente. Isso não significa que a solução é a legalização de armas. Significa que devemos resolver o problema da polícia ausente, corrupta e ineficiente. "Um aparato estatal que me prive da minha liberdade de defender minha vida?" Bom, filho, quando se trata de um instrumento cujo objetivo é potencialmente tirar a vida do outro, a liberdade individual também vale pro comparsa que tá na sua mira. Não importa se ele tá te assaltando, se ele quer te matar primeiro. Quando alguém ta apontando uma arma na sua cara, você vai pensar duas vezes em reagir mesmo se estiver armado. Não é tão simples assim. "Mas eu posso ter a chance de correr o risco e me salvar", alguns podem dizer. Claro, armas em mãos de bandidos é um problema sério. Mas armas nas mãos de todo mundo não resolve nada. Não diminui a criminalidade, nem a violência. No Brasil ainda?

Ser a favor do porte nesse país de retardado com gente se matando por causa da futebol e político: esquece. Alie isso à polarização e crescentes ondas de ódio, à apatia e à taxa do número de homicídios, à tendência inversa de pacificação em grande parte do mundo, e temos aí uma receita para gerar mais caos social. Foda-se a sua liberdade individual, você quer é ter sua arma para criar um falso sentimento de segurança, mas isso não vai acontecer se você descobrir que aquele seu vizinho folga também pode ter uma. Esqueça as armas. Legalizem-se as espadas! Isso seria muito mais interessante.

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"Supermercado Latrocínio, porque nossos preços são um roubo seguido de morte!"

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Eis aqui o meu roteiro de um filme de terror realístico:
 "Cinco amigos se encontram na casa de Heitor, para passar a noite, beber, conversar, talvez puxar um beque (se alguém se lembrou de comprar, claro) e se divertir um pouco. Uma das piranhas do grupo de amigos, de nome Patrícia, começa a contar a história de um amigo de um amigo que decidiu brincar da brincadeira do copo, um oculto e misterioso jogo que invocava espíritos atormentados do purgatório. Esse amigo do amigo acabou fazendo uma pergunta fatal e tendo consequências terríveis, e ninguém sabe até hoje onde ele está e o que aconteceu com ele. Com álcool no sistema nervoso, o grupo de amigos decide jogar o jogo do copo, e em meio a tanta tensão e excitação, o corajoso Gabriel, um burguês safado filhinho de papai, decide fazer a pergunta fatal. Após alguns segundos de espera, que para o grupo pareceu milhares de minutos, nada acontece. Eles ficam frustrados, mandam Patrícia tomar no cu e xingam o Gabriel de cuzão. Eles continuaram a beber até 4 da manhã."

23/02/2018

Rolês na periferia desse FDS

Confira abaixo a lista para os rolês, bailes, festas e baladinhas mais transadas da periferia para esse seu final de semana não passar na lamúria:

Baile eclético da Família Potranca, Rua da Lama, número 80
Horário: a partir das 21h

Nem só de funk vive a comunidade. Reggae, samba, forró, sertanejo, pagode, MPB, eletrônica, e muito mais, tudo pelas mãos do DJ Josival, cunhado do Danilzo Potranca. No fundo do quintal, passando pela casa da vó da Silmara, o baile será regado a iluminação de danceteria, com muitas bebidas que poderão ser consumidas a vontade e gente fingindo que sabe dançar.

Baile funk do Zézão, na esquina da Rua Garoto Pretinho com a Rua da Barraquinha
Forma de pagamento: bebidas alcoólicas, entorpecentes ilegais, sexo oral ou anal
Horário: a partir das 14h até ás 05h, ou até quando a última garrafa de energético acabar e ninguém mais tiver dinheiro

Happy hour ao ar livre, perfeito para ir com os amigos. Vizinhos talvez possam se incomodar com o barulho, porém não precisa se preocupar com a polícia interrompendo a festança, lá a ausência do Estado pode te deixar tranquilo! E mesmo se vierem, não saia correndo: os donos da festa farão questão de conversar com os policias e garantirem que não incomodarão mais. Baile regado à muita vodka barata, refrigerante para misturar com Dolly, catuaba, vinho de cinco reais, tudo isso acompanhado de belas porções de erva natural para relaxar os nervos!

E atenção: A partir da 00h iniciará a competição de fuga da Rota. Os traficantes da boca irão disparar alguns tiros e esperar a chegada da tropa. Quem ser capturado por último ganha a fiança.

Rolêzão na Praça da Cagada, em frente ao Departamento De Saneamento Urbano
Horário: a partir das 15h até ás 22h, porque os pais não deixaram passar disso

Encontrão dos jovens em meio aos arbustos secos e a grama alta não cortada da Praça da Cagada. Bebidas, cantadas, músicas no celular, tédio e muita conversa. Depois do anoitecer, trechos escuros da praça mal iluminada podem servir para casais românticos aproveitarem um momento de muita beijação. DST opcional.

Aniversário da Jandira, Rua da Lascívia, número 47
Horário: a partir das 17h30

Comemorando 50 anos, dona Jandira vai garantir nesse sabadão uma festança com muito bolo, beijinho, brigadeiro, coxinha fria da padaria, refrigerante quente e sem gás, gente feia, música ruim em uma caixa de som estourada, criança barulhenta, Skol congelada, criança traquineira estourando balão com o espetinho da linguiça, gritaria, e uma puta festa de família pra tu não ficar de fora!

08/02/2018

Transcritos aleatórios 2

 Eu não acho que a falta de significado seja desalentadora ou aterrorizante como muitos acreditam. O que é o significado? Temos esse desejo impulsivo de atrelar razão à tudo, dar ao universo e à nossa existência um significado especial, como se fôssemos dignos de tal. Eu não vejo como isso pode ser mais ilusório.

 Eu acho muito mais atraente o fato de sermos o resultado de um processo aleatório e fortuito de milhões de anos, que nos trouxe até aqui por meio da pura sorte. Isso assusta os mais crédulos, os crentes, pois os joga para um vazio onde não há um conforto emocional de acreditar que fazem parte de algo maior, de que tudo acontece por um motivo. Ser fruto de uma lenta evolução de milhões de anos, sem um criador superpoderoso? Nós nos recusamos em aceitar essa perspectiva, é absolutamente horrenda. Mesmo para os mais céticos, a princípio essa ideia também o é.

 Mas, abandonando a superstição e o pensamento místico, aceitar a nossa existência como um mero acaso, desprovido de significado especial no contexto do cosmos, é um ato de extrema humildade, grandeza e transformação. É como ir para um retiro espiritual no meio da floresta e se deparar com uma realidade que, longe de qualquer crença ou dogma, acalenta e engrandece a mente com uma perspectiva estarrecedora.

 É surpreendente e encantador poder enxergar o nosso parentesco evolutivo com todos os seres vivos do planeta, vislumbrar o panorama do universo e os átomos que de dentro das estrelas nos originam, aceitar a nossa profunda conexão com o cosmos e, ainda sim, sem precisar recorrer á qualquer tipo de busca de significado especial para a nossa existência que fuja da conexão com a realidade. Essa, pra mim, é uma perspectiva muito mais fascinante e prazerosa.

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 Eu me pergunto o que será desse blog quando eu morrer. Será que meus parentes o lerão com um misto de vergonha, risadas e encantamento? Se estão chorando: me desculpa. Eu sei que muitos dos textos aqui são apenas vergonhosos pra cacete. E olha que eu apaguei muitos deles. Esse blog é como um diário online, um registro de ideias que qualquer um pode ler. Será que ele servirá como recordação à minha vida, à minha personalidade? E se eles estiverem lendo isso exatamente quando eu já estiver morto? Estarão chorando, rindo, os dois? É certamente uma ideia interessante.

 Eu tenho muitas ideias interessantes. Eu só tenho preguiça de desenvolvê-las. Por exemplo: uma vez pensei num filme que se chamasse "A Volta Dos Que Foram Mas Não Voltaram". Sobre o que é? Eu não faço a menor ideia! Espero que eu consiga desenvolver o enredo antes de morrer.

31/01/2018

A Lei da Diminuição do Lanche

 Após a reinauguração de uma hamburgueria perto de casa, em um espaço maior e mais modernizado, eu notei que o meu lanche preferido tinha sofrido uma alteração: Ele costumava ser maior. Todos os ingredientes continuavam lá: a gorgonzola, o molho especial, o cheddar e o saboroso hambúrguer artesanal por entre o pão australiano. O pão e o hambúrguer, entretanto, pareciam menores, e os demais ingredientes pareciam ter sofrido uma pequena diminuição em sua quantidade. O preço talvez continuasse o mesmo, eu não lembrava a quantia original. Eu notei, portanto, que eu havia sido vítima dos efeitos implacáveis e dolorosos da impiedosa Lei da Diminuição do Lanche.

 A "Lei da diminuição do lanche" é um fenômeno de alteração no tamanho, qualidade e/ou preço de produtos alimentícios vendidos por novos estabelecimentos com o passar do tempo. Uma hamburgueria artesanal recém inaugurada, a fim de impressionar os primeiros clientes, irá produzir e vender lanches com a qualidade e preço mais satisfatórios possível, tendo em mente também a competição no mercado.

 Em caso de prosperidade do negócio, a hamburgueria acata mais custos, com mais funcionários, mais e melhores equipamentos, e possivelmente até a construção ou reforma para aumentar o local do estabelecimento. Isso, em ultimato, gera uma necessidade de maior renda para equilibrar os gastos extras, levando a um impacto direto no tamanho, qualidade e preço dos produtos, acarretando assim a diminuição do lanche. A hamburgueria então diminui, por exemplo, o lanche de R$25: o hambúrguer passa de 200g pra 180g, ou reduz-se a quantia de seus demais ingredientes, ou o tamanho do pão (ou uma combinação de todos eles). O preço pode continuar o mesmo ou subir. Em alguns casos o preço pode subir enquanto o lanche se mantém igual.

 Em caso de dificuldades financeiras, o lanche pode sofrer sua diminuição, porém o preço sofre nenhuma ou pouca alteração, podendo até mais barato para tentar competir com o mercado.

 O fator da diminuição do lanche encontra um momento de estagnação ou pouca flutuação enquanto o estabelecimento se encontra em situação comercial estável, mantendo um produto satisfatório e conseguindo um bom equilíbrio entre custo, renda e boa satisfação dos clientes - há menos que o estabelecimento decida aumentar a proporção dos lucros em relação aos custos, acarretando mais uma vez na diminuição do lanche. Os perigos de diminuir o lanche visando maior margem de lucros é a perda da clientela para estabelecimentos concorrentes. Em alguns casos, a diminuição do lanche e a alteração de seu preço podem ser impactantes a ponto de gerar críticas negativas. Dependendo da severidade e quantidade de críticas, o estabelecimento pode se ver pressionado a baixar os preços e/ou a aumentar a qualidade dos lanches, até novamente alcançar um equilíbrio.

 A tendência da relação de diminuição do lanche e alteração de seu preço quase nunca são proporcionais. Antes um lanche de R$25 podia ter 2 hambúrgueres de 200g, meia folha de alface, 2 pequenas rodelas de tomate, 2 pedaços de cheddar, 1 colher de chá de maionese caseira e uma pitada de molho especial. Conforme a Lei da diminuição do lanche, esse lanche pode sofrer a diminuição de seus 2 hambúrgueres de 200g pra 180g e 1 pedaço de cheddar, a diminuição do diâmetro e espessura da massa do pão e ingredientes mais restritos ou baratos para o molho especial. O preço, no entanto, pode continuar o mesmo, abaixar muito pouco em proporção à diminuição do lanche ou até mesmo aumentar, seguindo uma proporção inversa.

 Observação importante: a diminuição do lanche, conforme já descrito, não envolve só o tamanho e preço, mas também a qualidade dos ingredientes, as vezes sendo substituídos por quantidades menores, marcas ou métodos de produção inferiores e mais baratos. Igualmente importante observar também que A Lei da Diminuição do Lanche não se aplica só a lanches. Refrigerantes, sucos, bolachas, cervejas, assim como a indústria alimentícia como um todo (e não só ela) sofrem os efeitos dessa Lei. Outro dia um vendedor de doces do prédio onde trabalho anunciou-me, muito espertamente só após eu pegar uma caixa de seus brigadeiros de churros, o seu aumento de 10 para 12 reais. Mais uma vez a Lei da Diminuição do Lanche furtivamente me atacou de surpresa com todo o seu implacável golpe de descontentamento. E o próximo pode ser você.

25/01/2018

As quatro covas

 Os postes iluminavam escassamente o cemitério. Jânio cavava quatro covas por entre as folhas secas de Outono. O vento era tão gelado quanto sua alma. O ano era 1897, embora não se tenha certeza disso.

 Trabalhava sempre no período da madrugada. O cemitério não era murado, no entanto a cidade era tranquila, então ser zelador não era uma tarefa difícil - embora um ou outro bêbado ou cachorro aparecessem de repente e o assustasse. De qualquer forma, havia sempre ali em seu posto de descanso o mini rifle, carregado e funcionando.

 Os mortos não o incomodavam. Jânio enterrara tantos corpos que já se sentia como cada um deles, ali residindo logo abaixo. Alguns lhe eram conhecidos, e sentia-se emocionalmente íntimo a todos, conectado com a morte como um senhor da necromancia. De certa forma gostava dessa vida mórbida, era diferente.

 Após oito dias, cavando durante a madrugada, Jânio cavava o quarto e último túmulo, sozinho e com apenas uma enxada. Estava exausto. Sua idade avançada já não o permitia o mesmo alento de outrora. Sim, a verba municipal era ridícula, e para encurtar a história, acabou sobrando para ele abrir buracos na terra durante seu turno.

 Quem morreu? Foi vingança, doença, acidente? A vida podia acabar de formas inusitadas. Escutando apenas o dançar das árvores e a sinfonia da quietude contrastando com o atrito de sua enxada na terra, um novo elemento se adicionou à orquestra em seus ouvidos. Como estava dentro da sepultura, não podia visualizar quem se aproximava.

 Antes de finalmente subir de volta à superfície, um estrondo forte e alto irrompeu sobre o paralelepípedo, e Jânio assustado recuou por alguns segundos, antes de enfim saltar da cova. Sem ter tempo de terminar de subir, vislumbrou o terror a meros dez passos a sua frente. Três cadáveres desfalecidos aos pés de um desconhecido de aparência esquelética e fantasmagórica, de sobretudo e chapéu de aba pretos. O breu era fortalecido pelas lâmpadas incandescentes, que sombreavam a face do indivíduo em pé.
 - Quem é você?! - indagou Jânio.
 - Eu trouxe os corpos - de voz rasgada, arrastada e rouca, o desconhecido apontou para os cadáveres jogados ao chão. Jânio, incrédulo e pensativo, não respondeu de imediato.
 - Olha só parceiro, leve esses bonecos embora daqui porque eu tenho mais o que fazer. Vamos! Eu vou ter que pegar minha arma?

 A enigmática figura riu em desdém diante da ameaça:
 - Você não pode me matar - Jânio deu de costas, em direção ao seu posto de descanso:
 - Vamos ver quanto a isso.

 Antes mesmo de sair de dentro do posto, ecoou pela penumbra sepulcral do cemitério o ranger da arma engatilhando de Jânio, que se revelou já com o desconhecido em mira.
 - Esses são corpos reais? - ele perguntou, em tom intimador tentando mostrar confiança, embora assustado.
 - Você pode ter a certeza absoluta que sim.
 Jânio analisou os corpos, ainda com a arma em mira, consternado e com um semblante de repulsa e raiva.
 - Vire-se. Vire-se, caramba! Eu vou te levar agora mesmo para a delegacia. Vamos, desgraçado!
 Mas o desconhecido continuava imóvel, com um débil e arrogante sorriso no seu rosto pálido.
 - Por que você vai me levar até lá?
 - Você matou eles, seu assassino de merda! Não foi?! - explodiu Jânio, aumentando o tom de voz - dê meia-volta e coloca as mãos na cabeça ou eu te mato também! Eu cavei quatro covas essa semana e você vai preencher a última!
 O estranho continuou relutante, obstinado em sua posição como uma pedra. Novamente deu sua sutil gargalhada de desdém.
 - Me desculpa, Jânio. Os três corpos que eu trouxe foram justamente para essas covas. A última certamente não é minha.
 - É mesmo, palhaço?! Vamos descobrir. - e Jânio, com a adrenalina pulsando em seu corpo como um gorila raivoso, subiu o mini rifle à altura dos olhos e, com o alvo fixado, tentou pressionar o dedo indicador no gatilho. A paisagem turvou em sua visão, e ele perdeu o equilíbrio como se uma estranha força subitamente tivesse sugado toda sua energia vital. Sua pressão arterial desabou, as mãos encharcadas de suor frio não mais tiveram apoio para continuar segurando a arma e Jânio caiu em seguida, pressionando com uma das mãos sobre o peito acima do coração, onde uma lancinante dor de uma parada cardiorrespiratória rasgava todo o seu corpo.

 Sua consciência estava a beira do colapso e seus olhos capturavam uma sombra desfocada que se aproximava lentamente. O desconhecido então se agachou à seu lado.
 - A última cova é sua, Jânio. É hora de ir agora. - disse afavelmente enquanto fechou os olhos de Jânio e acariciou sua cabeça grisalha, que ainda tentava em vão lutar por um suspiro de postergação ao fim da vida.

 O desconhecido se levantou e tirou seu chapéu de aba preto, revelando a verdadeira face da morte, e segurando-o ao peitoral como um símbolo de luto.
 - Você nunca devia ter feito tanto esforço cavando essas covas, Jânio. Olha o que fez com você.