Páginas

25/01/2018

As quatro covas

 Os postes iluminavam escassamente o cemitério. Jânio cavava quatro covas por entre as folhas secas de Outono. O vento era tão gelado quanto sua alma. O ano era 1897, embora não se tenha certeza disso.

 Trabalhava sempre no período da madrugada. O cemitério não era murado, no entanto a cidade era tranquila, então ser zelador não era uma tarefa difícil - embora um ou outro bêbado ou cachorro aparecessem de repente e o assustasse. De qualquer forma, havia sempre ali em seu posto de descanso o mini rifle, carregado e funcionando.

 Os mortos não o incomodavam. Jânio enterrara tantos corpos que já se sentia como cada um deles, ali residindo logo abaixo. Alguns lhe eram conhecidos, e sentia-se emocionalmente íntimo a todos, conectado com a morte como um senhor da necromancia. De certa forma gostava dessa vida mórbida, era diferente.

 Após oito dias, cavando durante a madrugada, Jânio cavava o quarto e último túmulo, sozinho e com apenas uma enxada. Estava exausto. Sua idade avançada já não o permitia o mesmo alento de outrora. Sim, a verba municipal era ridícula, e para encurtar a história, acabou sobrando para ele abrir buracos na terra durante seu turno.

 Quem morreu? Foi vingança, doença, acidente? A vida podia acabar de formas inusitadas. Escutando apenas o dançar das árvores e a sinfonia da quietude contrastando com o atrito de sua enxada na terra, um novo elemento se adicionou à orquestra em seus ouvidos. Como estava dentro da sepultura, não podia visualizar quem se aproximava.

 Antes de finalmente subir de volta à superfície, um estrondo forte e alto irrompeu sobre o paralelepípedo, e Jânio assustado recuou por alguns segundos, antes de enfim saltar da cova. Sem ter tempo de terminar de subir, vislumbrou o terror a meros dez passos a sua frente. Três cadáveres desfalecidos aos pés de um desconhecido de aparência esquelética e fantasmagórica, de sobretudo e chapéu de aba pretos. O breu era fortalecido pelas lâmpadas incandescentes, que sombreavam a face do indivíduo em pé.
 - Quem é você?! - indagou Jânio.
 - Eu trouxe os corpos - de voz rasgada, arrastada e rouca, o desconhecido apontou para os cadáveres jogados ao chão. Jânio, incrédulo e pensativo, não respondeu de imediato.
 - Olha só parceiro, leve esses bonecos embora daqui porque eu tenho mais o que fazer. Vamos! Eu vou ter que pegar minha arma?

 A enigmática figura riu em desdém diante da ameaça:
 - Você não pode me matar - Jânio deu de costas, em direção ao seu posto de descanso:
 - Vamos ver quanto a isso.

 Antes mesmo de sair de dentro do posto, ecoou pela penumbra sepulcral do cemitério o ranger da arma engatilhando de Jânio, que se revelou já com o desconhecido em mira.
 - Esses são corpos reais? - ele perguntou, em tom intimador tentando mostrar confiança, embora assustado.
 - Você pode ter a certeza absoluta que sim.
 Jânio analisou os corpos, ainda com a arma em mira, consternado e com um semblante de repulsa e raiva.
 - Vire-se. Vire-se, caramba! Eu vou te levar agora mesmo para a delegacia. Vamos, desgraçado!
 Mas o desconhecido continuava imóvel, com um débil e arrogante sorriso no seu rosto pálido.
 - Por que você vai me levar até lá?
 - Você matou eles, seu assassino de merda! Não foi?! - explodiu Jânio, aumentando o tom de voz - dê meia-volta e coloca as mãos na cabeça ou eu te mato também! Eu cavei quatro covas essa semana e você vai preencher a última!
 O estranho continuou relutante, obstinado em sua posição como uma pedra. Novamente deu sua sutil gargalhada de desdém.
 - Me desculpa, Jânio. Os três corpos que eu trouxe foram justamente para essas covas. A última certamente não é minha.
 - É mesmo, palhaço?! Vamos descobrir. - e Jânio, com a adrenalina pulsando em seu corpo como um gorila raivoso, subiu o mini rifle à altura dos olhos e, com o alvo fixado, tentou pressionar o dedo indicador no gatilho. A paisagem turvou em sua visão, e ele perdeu o equilíbrio como se uma estranha força subitamente tivesse sugado toda sua energia vital. Sua pressão arterial desabou, as mãos encharcadas de suor frio não mais tiveram apoio para continuar segurando a arma e Jânio caiu em seguida, pressionando com uma das mãos sobre o peito acima do coração, onde uma lancinante dor de uma parada cardiorrespiratória rasgava todo o seu corpo.

 Sua consciência estava a beira do colapso e seus olhos capturavam uma sombra desfocada que se aproximava lentamente. O desconhecido então se agachou à seu lado.
 - A última cova é sua, Jânio. É hora de ir agora. - disse afavelmente enquanto fechou os olhos de Jânio e acariciou sua cabeça grisalha, que ainda tentava em vão lutar por um suspiro de postergação ao fim da vida.

 O desconhecido se levantou e tirou seu chapéu de aba preto, revelando a verdadeira face da morte, e segurando-o ao peitoral como um símbolo de luto.
 - Você nunca devia ter feito tanto esforço cavando essas covas, Jânio. Olha o que fez com você.