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31/01/2018

A Lei da Diminuição do Lanche

 Após a reinauguração de uma hamburgueria perto de casa, em um espaço maior e mais modernizado, eu notei que o meu lanche preferido tinha sofrido uma alteração: Ele costumava ser maior. Todos os ingredientes continuavam lá: a gorgonzola, o molho especial, o cheddar e o saboroso hambúrguer artesanal por entre o pão australiano. O pão e o hambúrguer, entretanto, pareciam menores, e os demais ingredientes pareciam ter sofrido uma pequena diminuição em sua quantidade. O preço talvez continuasse o mesmo, eu não lembrava a quantia original. Eu notei, portanto, que eu havia sido vítima dos efeitos implacáveis e dolorosos da impiedosa Lei da Diminuição do Lanche.

 A "Lei da diminuição do lanche" é um fenômeno de alteração no tamanho, qualidade e/ou preço de produtos alimentícios vendidos por novos estabelecimentos com o passar do tempo. Uma hamburgueria artesanal recém inaugurada, a fim de impressionar os primeiros clientes, irá produzir e vender lanches com a qualidade e preço mais satisfatórios possível, tendo em mente também a competição no mercado.

 Em caso de prosperidade do negócio, a hamburgueria acata mais custos, com mais funcionários, mais e melhores equipamentos, e possivelmente até a construção ou reforma para aumentar o local do estabelecimento. Isso, em ultimato, gera uma necessidade de maior renda para equilibrar os gastos extras, levando a um impacto direto no tamanho, qualidade e preço dos produtos, acarretando assim a diminuição do lanche. A hamburgueria então diminui, por exemplo, o lanche de R$25: o hambúrguer passa de 200g pra 180g, ou reduz-se a quantia de seus demais ingredientes, ou o tamanho do pão (ou uma combinação de todos eles). O preço pode continuar o mesmo ou subir. Em alguns casos o preço pode subir enquanto o lanche se mantém igual.

 Em caso de dificuldades financeiras, o lanche pode sofrer sua diminuição, porém o preço sofre nenhuma ou pouca alteração, podendo até mais barato para tentar competir com o mercado.

 O fator da diminuição do lanche encontra um momento de estagnação ou pouca flutuação enquanto o estabelecimento se encontra em situação comercial estável, mantendo um produto satisfatório e conseguindo um bom equilíbrio entre custo, renda e boa satisfação dos clientes - há menos que o estabelecimento decida aumentar a proporção dos lucros em relação aos custos, acarretando mais uma vez na diminuição do lanche. Os perigos de diminuir o lanche visando maior margem de lucros é a perda da clientela para estabelecimentos concorrentes. Em alguns casos, a diminuição do lanche e a alteração de seu preço podem ser impactantes a ponto de gerar críticas negativas. Dependendo da severidade e quantidade de críticas, o estabelecimento pode se ver pressionado a baixar os preços e/ou a aumentar a qualidade dos lanches, até novamente alcançar um equilíbrio.

 A tendência da relação de diminuição do lanche e alteração de seu preço quase nunca são proporcionais. Antes um lanche de R$25 podia ter 2 hambúrgueres de 200g, meia folha de alface, 2 pequenas rodelas de tomate, 2 pedaços de cheddar, 1 colher de chá de maionese caseira e uma pitada de molho especial. Conforme a Lei da diminuição do lanche, esse lanche pode sofrer a diminuição de seus 2 hambúrgueres de 200g pra 180g e 1 pedaço de cheddar, a diminuição do diâmetro e espessura da massa do pão e ingredientes mais restritos ou baratos para o molho especial. O preço, no entanto, pode continuar o mesmo, abaixar muito pouco em proporção à diminuição do lanche ou até mesmo aumentar, seguindo uma proporção inversa.

 Observação importante: a diminuição do lanche, conforme já descrito, não envolve só o tamanho e preço, mas também a qualidade dos ingredientes, as vezes sendo substituídos por quantidades menores, marcas ou métodos de produção inferiores e mais baratos. Igualmente importante observar também que A Lei da Diminuição do Lanche não se aplica só a lanches. Refrigerantes, sucos, bolachas, cervejas, assim como a indústria alimentícia como um todo (e não só ela) sofrem os efeitos dessa Lei. Outro dia um vendedor de doces do prédio onde trabalho anunciou-me, muito espertamente só após eu pegar uma caixa de seus brigadeiros de churros, o seu aumento de 10 para 12 reais. Mais uma vez a Lei da Diminuição do Lanche furtivamente me atacou de surpresa com todo o seu implacável golpe de descontentamento. E o próximo pode ser você.

25/01/2018

As quatro covas

 Os postes iluminavam escassamente o cemitério. Jânio cavava quatro covas por entre as folhas secas de Outono. O vento era tão gelado quanto sua alma. O ano era 1897, embora não se tenha certeza disso.

 Trabalhava sempre no período da madrugada. O cemitério não era murado, no entanto a cidade era tranquila, então ser zelador não era uma tarefa difícil - embora um ou outro bêbado ou cachorro aparecessem de repente e o assustasse. De qualquer forma, havia sempre ali em seu posto de descanso o mini rifle, carregado e funcionando.

 Os mortos não o incomodavam. Jânio enterrara tantos corpos que já se sentia como cada um deles, ali residindo logo abaixo. Alguns lhe eram conhecidos, e sentia-se emocionalmente íntimo a todos, conectado com a morte como um senhor da necromancia. De certa forma gostava dessa vida mórbida, era diferente.

 Após oito dias, cavando durante a madrugada, Jânio cavava o quarto e último túmulo, sozinho e com apenas uma enxada. Estava exausto. Sua idade avançada já não o permitia o mesmo alento de outrora. Sim, a verba municipal era ridícula, e para encurtar a história, acabou sobrando para ele abrir buracos na terra durante seu turno.

 Quem morreu? Foi vingança, doença, acidente? A vida podia acabar de formas inusitadas. Escutando apenas o dançar das árvores e a sinfonia da quietude contrastando com o atrito de sua enxada na terra, um novo elemento se adicionou à orquestra em seus ouvidos. Como estava dentro da sepultura, não podia visualizar quem se aproximava.

 Antes de finalmente subir de volta à superfície, um estrondo forte e alto irrompeu sobre o paralelepípedo, e Jânio assustado recuou por alguns segundos, antes de enfim saltar da cova. Sem ter tempo de terminar de subir, vislumbrou o terror a meros dez passos a sua frente. Três cadáveres desfalecidos aos pés de um desconhecido de aparência esquelética e fantasmagórica, de sobretudo e chapéu de aba pretos. O breu era fortalecido pelas lâmpadas incandescentes, que sombreavam a face do indivíduo em pé.
 - Quem é você?! - indagou Jânio.
 - Eu trouxe os corpos - de voz rasgada, arrastada e rouca, o desconhecido apontou para os cadáveres jogados ao chão. Jânio, incrédulo e pensativo, não respondeu de imediato.
 - Olha só parceiro, leve esses bonecos embora daqui porque eu tenho mais o que fazer. Vamos! Eu vou ter que pegar minha arma?

 A enigmática figura riu em desdém diante da ameaça:
 - Você não pode me matar - Jânio deu de costas, em direção ao seu posto de descanso:
 - Vamos ver quanto a isso.

 Antes mesmo de sair de dentro do posto, ecoou pela penumbra sepulcral do cemitério o ranger da arma engatilhando de Jânio, que se revelou já com o desconhecido em mira.
 - Esses são corpos reais? - ele perguntou, em tom intimador tentando mostrar confiança, embora assustado.
 - Você pode ter a certeza absoluta que sim.
 Jânio analisou os corpos, ainda com a arma em mira, consternado e com um semblante de repulsa e raiva.
 - Vire-se. Vire-se, caramba! Eu vou te levar agora mesmo para a delegacia. Vamos, desgraçado!
 Mas o desconhecido continuava imóvel, com um débil e arrogante sorriso no seu rosto pálido.
 - Por que você vai me levar até lá?
 - Você matou eles, seu assassino de merda! Não foi?! - explodiu Jânio, aumentando o tom de voz - dê meia-volta e coloca as mãos na cabeça ou eu te mato também! Eu cavei quatro covas essa semana e você vai preencher a última!
 O estranho continuou relutante, obstinado em sua posição como uma pedra. Novamente deu sua sutil gargalhada de desdém.
 - Me desculpa, Jânio. Os três corpos que eu trouxe foram justamente para essas covas. A última certamente não é minha.
 - É mesmo, palhaço?! Vamos descobrir. - e Jânio, com a adrenalina pulsando em seu corpo como um gorila raivoso, subiu o mini rifle à altura dos olhos e, com o alvo fixado, tentou pressionar o dedo indicador no gatilho. A paisagem turvou em sua visão, e ele perdeu o equilíbrio como se uma estranha força subitamente tivesse sugado toda sua energia vital. Sua pressão arterial desabou, as mãos encharcadas de suor frio não mais tiveram apoio para continuar segurando a arma e Jânio caiu em seguida, pressionando com uma das mãos sobre o peito acima do coração, onde uma lancinante dor de uma parada cardiorrespiratória rasgava todo o seu corpo.

 Sua consciência estava a beira do colapso e seus olhos capturavam uma sombra desfocada que se aproximava lentamente. O desconhecido então se agachou à seu lado.
 - A última cova é sua, Jânio. É hora de ir agora. - disse afavelmente enquanto fechou os olhos de Jânio e acariciou sua cabeça grisalha, que ainda tentava em vão lutar por um suspiro de postergação ao fim da vida.

 O desconhecido se levantou e tirou seu chapéu de aba preto, revelando a verdadeira face da morte, e segurando-o ao peitoral como um símbolo de luto.
 - Você nunca devia ter feito tanto esforço cavando essas covas, Jânio. Olha o que fez com você.