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24/11/2020

Era pra ter sido uma vida feliz

Eu tive uma vida boa, mas não fui feliz. 

Não sei em que momento descobri que não era verdade. De que bastava eu estudar, me dedicar no trabalho, ser um marido amoroso, acreditar em mim mesmo, e buscar fazer do mundo um lugar melhor. Já na pré-adolescência eu não me via motivado pra nada. O misto de auto cobrança e procrastinação foi desastroso. Tive um emprego entediante, que eu nunca amei, porém estável e que me permitiu sobreviver. Fui casado por 34 anos e fiz de tudo pra tentar ser um bom marido, mas fui um incompetente em todos os sentidos.

Nunca fui bom em conseguir ser bom em nada. Ainda na infância me lembro de ter chorado porque não conseguia decorar o alfabeto. Demorei pra conseguir aprender a amarrar meus próprios cadarços. Tentei ser escritor, mas não tinha criatividade pra escrever sem no final acabar imitando o que já tinha lido. Tentei ser um bom estudante, mas tudo parecia ser sempre mais difícil pra mim do que pros outros. Minha memória sempre foi uma traiçoeira nefasta e me sabotou inúmeras boas oportunidades. Tentei ser um bom ator, mas jamais conseguia decorar bem minhas falas. Minha carreira jamais saiu dos primeiros degraus. Tentei ser um bom filho e amigo, mas tratei todos com frieza e distância e provavelmente magoei e decepcionei muito mais gente do que jamais poderia recompensar. Vivi com culpa e remorso após a morte de entes queridos por não ter sido melhor pra eles. Vivi com culpa e remorso por ter sido uma pessoa desprezível a vida inteira e só ter notado isso tarde demais.

Preciso ser justo também. Tive uma vida boa e privilegiada. Se eu colocar em perspectiva, tive acesso ao que a maioria não teve. Talvez se eu tivesse batalhas mais difíceis pra lutar eu poderia ter sido mais humilde. Mais humano. Ainda sim drenei minha atenção à inseguranças e neuroticismos. Não aproveitei pequenos e grandes momentos de felicidade da qual tive oportunidade. Essas experiências externas de prazer foram diminuídas pela agonia interior fabricada pelo próprio ego. Encolhidas pelas angústias ilusórias de uma mente danificada e auto sabotadora.

Era pra ter sido uma vida feliz. Não sei porque, só queria acreditar que deveria. Mas fui me provando errado a cada tentativa. Nenhuma terapia adiantou. Me vi velho, aposentado, ainda preso aos mesmos erros, aos mesmos vícios e aos mesmos hábitos. Eles me mantiveram prisioneiros de suas fabricações por todo o tempo.

Hoje eu só consigo acreditar que não nasci pra viver uma vida feliz. Nem sequer que nasci pra viver. Talvez eu troquei algumas fantasias por outras. Mas os sonhos foram virando pesadelos. A euforia sempre foi dando lugar ao torpor. No fim restou a decomposição de um projeto de vida. A sombra do que foi antes uma faísca de explosões carregadas de energia. Um voltar ao esquecimento, ao escuro eterno, de onde não deveria ter saído. A única oportunidade de ter uma experiência única no universo valeu a pena? Não estar morto por um brevíssimo período de tempo na escala cosmológica foi um erro? Eu queria estar dando aqui meu testemunho final, de amor e esperança, de expressar gratidão e saudade, amor e compaixão. E, no entanto, esse é meu testemunho final. Uma mente que só alimenta planos que se tornam frustrações é dona de toda a angústia do mundo.

03/11/2020

A letargia

Poucas coisas me deixam tão inquieto quanto a capacidade destrutiva do meio ambiente causada pelo homem. Lá fora tem um movimento ambientalista chamado "Extinction Rebellion", ou "Rebelião da Extinção", que direto organiza protestos contra o fracasso mundial em conter as mudanças climáticas e adotar políticas mais ecológicas.

Aqui no Brasil, apesar da destruição intencional de seus biomas, esse movimento não tem qualquer expressividade. Apesar dele existir aqui, não há sequer uma faísca de maior adesão população contra isso.

Não que eu também não entenda. O povo vai ir pras ruas protestar contra incêndios numa floresta distante pra que? Pra correr risco de pegar COVID-19 enquanto mal consegue comprar arroz e pagar a conta de luz? Não a toa o Extinction Rebellion também tem mais popularidade em países mais ricos. Recentemente o tal do "New Green Deal", movimento que pressiona os EUA a adotar políticas mais sustentáveis, ganhou força entre ativistas climáticos e progressistas. O que estamos fazendo no Brasil além de nos preocupar com traições entre casais famosos e ignorar assassinatos de lideranças ambientalistas e indígenas? O povo prefere, e precisa, não sem razão, se preocupar com tópicos mais primários de sobrevivência, como poder ter dinheiro pra comer. Mas talvez também estejamos apáticos e desanimados demais com tudo, ou talvez o brasileiro nunca tenha tido uma construção cidadã e política forte o suficiente para se manifestar em massa contra esse pandemônio ecológico. Afinal, não foi através de manifestações populares que se derrubou a monarquia. Talvez a pandemia e esse governo obscurantista, que propositalmente permite milhares de mortes diárias por um vírus e a devastação de seus ecossistemas nos tenha sugado de qualquer força pra pensar em fazer alguma coisa. Ou talvez a situação se tornou tão lamentável que até mesmo se importar com o meio ambiente se tornou secundário. Ou simplesmente preferimos não enxergar o buraco em que estamos.

O triste é saber que mesmo ações coletivas não corrigem o poder destrutivo em prol do capital com a anuência de um governo irresponsável. No final, só queremos ver um filme no fim do dia pra dormir e se sentir bem, afinal todos merecemos um pouco de lazer. E nessa sensação de derrota e letargia, seguimos testemunhando um vírus que ainda vitima milhares, um Estado que é desmontado e corroído com o apoio do grande empresariado, pessoas voltando a passar fome e a um Brasil acabando em fogo.