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20/05/2016

Um conto intergalático

 Contemplo o céu âmbar no cume desse vale. O precipício apresenta-se diante de dois passos a minha frente, em sua descida de mais de dois mil metros. Eu visito essa galáxia longínqua, pousando na superfície rochosa de um de seus muitos bilhões de planetas.

 Um sentimento perscruta pela atmosfera rasa desse corpo celeste inóspito, com seus ventos intermináveis de uma fina cor sangrenta. Quão longe foi a distância que percorremos, em nossa audaciosa busca aventureira pelo desconhecido? Observávamos esse planeta, de longe. Ambiciosas foram as tentativas até aqui, e eis que me encontro sob essas formações geológicas de perto.

 Alvo de muito estudo científico, devido a indícios de presença biológica e - muito certamente - vida inteligente, piso na areia nunca antes sondada desse imenso globo errante. Quieto e intimidador, ouço seu uivo solitário nunca antes escutado por ninguém da nossa espécie.

 As finas e geladas nuvens assobiam e serpenteiam por sobre o solo, coloridas de tons que passeiam entre o laranja e o sépia. Sua estrela hospedeira me recebe com sua débil iluminação avermelhada, e mortalmente me amedronto. Contemplo o firmamento nublado por sobre o horizonte, com suas diferentes estrelas em diferentes posições. Elas me avisam da minha posição no cosmos. Não sou capaz de descrever ou compreender o que sinto. Invisível, impotente, aterrorizado, minúsculo. O negrume do enorme vácuo celestial me envolve com seu braço espiral galático e encaro a solidão. Um súbito pânico me petrifica, e cria-me o desejo de voltar de imediato. Este mesmo pavor me faz querer continuar investigando.

 Eu avanço, reflexivo, por sobre as regiões pedregulhosas desse vale, e suas montanhas me acenam ao longe na linha do horizonte. Paisagens desérticas se esticam para além da visão periférica e ruínas são encobertas por poeira, relatando um cenário apocalíptico. Sinto a necessidade de mostrar e relatar o que vejo, todavia vejo-me sozinho, andando por planícies despovoadas. Tudo parece apático, desocupado, abandonado. Nunca o sentimento de solidão foi-me tão intenso. Eu posso ouvir a minha circulação sanguínea, porém nenhum ruído de algum animal exótico distante nesse inerte panorama. Penso nas inimagináveis cenas do que pode ter acontecido no passado desse planeta.

 Subitamente, tudo parece... semelhante, como a face de um velho rosto amigo. Vejo traços no solo arenoso, ruínas e escombros de restos metálicos oxidados, materiais excêntricos que se assemelham à plásticos. Com espantosa admiração, olho os indícios do que poderia ter sido um dia atividades de alguma forma de vida inteligente. Eu vejo esqueletos, destroços de edificações ao longe, encobertos pela desertificação desse árido planeta morto, e então, em pavorosa assimilação concluí que, pelo o que observei, não havia mais nenhum deles aqui. Meu coração congela e em estado de frenesi fito sinais de antigas épocas, em um diferente planeta, da devastação infringida a uma espécie de vida tecnológica. Me é indecifrável conjecturar sobre como eles eram. Muito menos me é imaginável como esse planeta desértico e aparentemente hostil foi capaz de abrigar um dia seres vivos, e como trilhou seu caminho para o declínio até a total aniquilação da vida. Como eram esses seres vivos? Ainda em choque, sou incapaz de começar a imaginar.

 Conseguimos descobrir algumas coisa sobre eles, onde mais se concentravam demograficamente ou que tipo de elementos químicos mais produziam. Nunca pudemos descobrir, no entanto, como eram anatomicamente. Nenhuma espécie senciente e inteligente me apareceu à vista. Foram todos condenados ao extermínio eterno. Por explosões solares, meteoro, guerra nuclear?

 Posso somente supor. Em um exoplaneta obscuro, certo por nossa comunidade científica de que poderia conter vida inteligente, e até mesmo civilizações desenvolvidas, encontro-me apenas dominado por ambientes infernais, o que faz-me entrar em transe pelo assombro.  Por um instante sinto-me em meu próprio planeta, encarando o prefácio de andar por colinas inabitadas sob a extinção eterna de minha própria espécie. A distância imensurável entre este enigmático planeta e o meu parece inexistente e, de um instante para o outro, esse sentimento some. Sinto-me perdido novamente nessa praia intergalática.

 Observo os deteriorados vestígios materiais deixados por essa espécie falida, e domina-me um sentimento horroroso de melancolia. Durante anos observamos esse mundo longínquo de nosso planeta, avistando um débil e pálido reflexo azul, certos de que aqui poderíamos encontrar vida. Estávamos certos. Sinto-me deprimido, como alguém que chegou na cena de um crime sem ter conseguido impedir o assassinato. Estou diante de uma misteriosa cena de devastação que vitimizou a total existência da vida nesse planeta. Obrigo-me a reportar com pesar ao meu mundo que chegamos, portanto, tarde demais para contatar os habitantes deste planeta que, como soubemos, um dia o chamaram de "Terra".

17/05/2016

6 horas

 Saí do consultório petrificado. O médico apertou levemente meu ombro, desviou o olhar para baixo, inspirou e sentenciou minha sina. Estremeci. Comecei a ver a sombra. Voltei pra casa carregando o fardo de mil pensamentos simultâneos.

 Você já sentiu a senciência da morte? A lucidez de saber o cessar de suas atividades biológicas? Não falo de ser vítima de um assalto a mão armada, de saber que você pode morrer ao vacilo de qualquer movimento brusco. É saber que tudo a sua volta não mais será alvo de seus olhos. De que tudo irá embora.

 Voltei pra casa com sete dias restantes de vida. No primeiro dia, eu não pude pensar, não consegui falar. Meu médico ainda me ligaria no decorrer da semana. Disse-me que poderiam haver novidades em meus exames. Minhas emoções foram vazias, imersas em um puro fluído de reflexões sem objetivos que minha mente criou. Minha esposa dirigiu e chegamos em total silêncio e desolação.

 144 horas me restando de vida, acordei com a certeza de que eu não verei a próxima fase lunar, em breve eu não acordarei mais após um breve sono. O mês de Outubro será desconhecido, o planeta rotacionará sobre si sem a minha existência sobre sua superfície e as estrelas brilharão no céu mesmo em minha ausência.

 Ao saber que encontrava-me respirando no dia seguinte, tentava ainda tirar uma conclusão, chegar a um racional consenso, mas o que podia pensar? Minha morte me fora anunciada e eu ainda havia tanto o que fazer. Eu não sabia o que fazer, e não sabia o que saber. Olhei pela janela da minha residência onde moro, ao sul da região metropolitana. Os orvalhos se extinguirão para mim, pois nunca mais os verei, e soube que eu irei morrer. Eu olhei os quatro cantos da visão periférica e soube da fragilidade da existência, da minúscula significância do impacto de minha morte. Eu soube, assim como sei o meu nome, a minha jornada até aqui, a minha vida. Em breve não saberei mais. Tudo esvaecerá, em aproximadas 115 horas que ainda havia por viver.

 "Então eu tenho 115 horas. O que eu posso fazer?"

 Levantei-me depois, com surpreendente otimismo. Tomei meus remédios; meu médico ainda não ligara. A apreensão, contudo, estava inexistente. Eu não queria ficar inerte. Bebi um do meus últimos goles de água. Senti-me enjoado; eu estava com fome, porém sem apetite. Beijei minha esposa com a paixão fértil de um adolescente saudável. Ela me olhou com a dor de mil cátaros sendo apunhalados por inquisidores. Ela sente a agonia de carregar consigo o fardo premeditado da perda e da morte que a mim ei de ocorrer. Vê-la em seu interior, com seu sorriso pueril, porém sofrido, foi sentir o gosto do beijo da sombra que se aproximava de mim. Olha-la em seus olhos foi sofrer a perda não só dela, mas a de mim mesmo, de dizer adeus ao meu corpo, às minhas moléculas, ao caminho que percorremos juntos, tudo o que define o meu ser, minha individualidade, nossa vida e nosso matrimônio. Não consigo recordar de nenhum momento tão doloroso quanto esse, e foi com esse pesar do tamanho de montanhas que a abracei e permanecemos entrelaçados, silenciosos, ouvindo nosso batimentos cardíacos, por uma duração de tempo que me é impossível de mensurar.

 Por mim o anjo da morte poderia ter me levado naquele abraço acolhedor. As horas de vida restantes que meu médico proclamara seriam-me dispensáveis naquele ponto.

 Decidi antes do começo da tarde, sem nenhum propósito aparente, ir sozinho até o parque observar o lago e as gaivotas por uma última vez  Sentia-me ligeiramente débil, com uma crise de tosse insistente, contudo não contive-me. Eu senti os galhos e as folhas. Eu comprei meu último picolé. Não consegui saboreá-lo com vigor, infelizmente. Meu paladar estava fraco e minha arca dentária sensível.

 Não permaneci muito tempo lá no parque, no meu atual estado de saúde. Retornei para casa, admirei em esplendor a refração da luz solar por sobre o céu do globo terrestre, com suas camadas geomagnéticas e atmosféricas. Eu agradeci aos meus ancestrais sobreviventes de predadores naturais e aos meus antepassados que não foram extintos pela Peste Negra. Eu pude viver minha vida de forma esplendorosa graças aos descobridores do fogo e da penicilina. Eu senti a sombra, ainda distante, acenar para mim, sem pressa para chegar perto. Senti os esforços de meu organismo debilitado à caminho de casa, encontrando-me espiritualmente em paz. Meu tempo, no entanto, está no fim. Definitivamente.

 Meu médico não havia ligado ainda. Ele havia prometido... mas deve estar ocupado. Será que haviam encontrado algo em meus exames? E se...

 Sentei-me por algumas horas em minha cadeira reclinável, toquei meu clarinete empoeirado em tons soturnos e melódicos, e voltei a olhar por sobre a janela de meu quarto, com cerca de 106 em crédito de horas como ser vivo consciente.

 Fitei a curvatura da Terra. Observei as luzes que desvaeceram ao crepúsculo no pôr do Sol, e que trarão consigo o ceifador, que se esgueira pelas sombras, e essa sombra avança a cada minuto, assim como o dia dá lugar à noite. Exceto que a noite irá durar para sempre. Eu sinto essa sombra. A cada segundo, milimetricamente aproximando-se.

 Não lembro que horas dormi. Acordei no dia seguinte, para minha surpresa. Eu liguei para meus familiares, estes sem saber do meu breve período restante no cronômetro da existência física. Eu ri com a minha mãe, mesmo estando longe. Eu falei com meu pai, sem a coragem de me despedir, e sem a coragem de dizer o quanto ele fora meu herói. Eu senti seus contentamentos em receber uma ligação descompromissada do filho distante. Eu dizia adeus e chorava por dentro, e por fora eu apenas me comportava como se fosse passar o próximo Natal com eles. Tudo está indo embora, prestes a não mais existir por toda a eternidade. Os medicamentos me ajudam, e a sombra ainda parecia apenas um ponto ignóbil, mas na verdade ela esta mais próxima. A noite está chegando.

 Gargalhei pelos motivos mais estapafúrdios, das piadas mais grotescas e realizei as tarefas mais triviais para alguém que nunca mais irá testemunhar as belezas e misérias do mundo. Eu gostaria de ter rido mais, de ter chorado com mais frequência, sem medo. Senti meu sistema querendo encerrar suas atividades, apagar todas as minhas luzes e me hibernar-me para o resto da existência do tempo.

 Eu abracei novamente a minha esposa, sabendo que nunca mais sentirei em muito breve seu corpo novamente, ela nunca mais será por mim entrelaçada novamente. Eu poderia ter feito mais por ela? Eu poderia ter dito que a amava mais vezes. E por que não me criou a coragem logo sabendo do meu perecimento em tão pouco tempo? Meus diálogos acabarão, as cortinas encerrarão a minha peça. E não haverá reapresentação no próximo Natal. E eu a amara sem a menor hesitação, durante todo o tempo que passamos juntos. E eu sei que ela sempre soube disso.

 Abracei meu labrador de estimação, entregando-me aos prantos. Eu não conseguia parar diante da inevitável perda mútua, tanto minha quanto dele. Eu poderia tê-lo abraçado mais, e em breve nunca mais o farei. Ele sentirá minha falta? Ele não terá consciência da minha despedida eterna, em suas naturezas tão alheias à morte. Eu com certeza sentirei saudades dele. Eu sinto a sombra dando alguns passo em minha direção, taciturnamente por entre os pilares da fábrica da existência, prestes a agarrar os véus da negritude e me enrolar com eles.

 Eu adoraria ter ligado para amigos, tê-los em meus braços, beber uma última cerveja com eles. Foram todos embora, no entanto. As amizades foram sendo varridas como pó. Não tenho um velho companheiro para me despedir. Eu poderia ter cultivado mais amizades.

 Encontrei-me ainda vivo no quinto dia, com até talvez um cômico espanto. Agora sobram-me apenas dois dígitos de horas restantes.

 A morte pareceu uma ideia banal. Algo abstrato, que não irá acontecer. É como se eu quisesse que a sombra viesse logo. E ela estava mais perto, sim estava. Começava a sorrir timidamente para mim. O Sol já estava na linha do horizonte e a sombra trazia consigo as flâmulas negras ao meu encalço, e a cegueira havia por me atingir. Senti-me conectado ao mundo, porém fisicamente débil, prestes a ser abraço pelo mar da penumbra.

 Poderia ter dito que não morrerei. Eu poderia ter me convencido de uma mentira para me sentir melhor. E de fato tentei. Poderia ter pedido exames mais completos. Meu médico combinou-me de me ligar, e ainda nada. Ainda faltava um exame a ser analisado mais cautelosamente. Pensei no que ele havia dito de que "poderiam haver novidades". Isso me causava mistos e confusos pensamentos... Acredite, no entanto, que a constatação é definitiva. Meu estilo de vida, o meu corpo decadente, e a sombra que se aproxima furtivamente; corroboram a sentença oficial do médico sobre minha condenação.

 As menos de 100 horas me começaram a dar medo. Meu médico ainda não havia ligado. Eu acho que ligarei para ele.

 Subitamente vi-me revendo o filme de toda a minha vida, e devaneei de mãos dadas com as minhas memórias. Empregos passados, brigas e romances, risadas e revoltas, experiências e conhecimentos, possessões materiais e intangíveis. Pensei no que me restou a fazer, dos arrependimentos e dos planejamentos pendentes nunca até então concretizados. Serei eu buscado por um anjo? Irei para o inframundo de Xibalbá, para o céu celestial cristão, para o submundo de Niflheim, para o reinado de Hades no mundo inferior ou o de Osíris? Quem iria me buscar? Dormirei sem ir para lugar algum, no leito negro da inexistência eterna? Esses devaneios cansaram-me a mente.

 Débil e de uma imensurável tristeza apossando-se de mim, acordei de um longo repouso com menos de 70 horas de bagagem. Um desânimo total dominou minhas faculdades emocionais e toda a minha mente entregou-se ao abraço da sombra, que conforme eu percebia, arrastava consigo as trevas mais um pouco perto ao meu redor. Pensei em meus pais, e o quanto poderia tê-los apreciado com mais frequência, expressado meus carinhos para com eles. Como eles irão receber a notícia de meu falecimento?

 Fagueira, eu vejo a escuridão da sombra permear a superfície do meu perímetro ocular. Minha voz enfraqueceu, meus remédios pararam de fazer o efeito desejado de outrora. Minha fragilizada saúde começou a deteriorar-se e passei a dormir mais. Minha memória falha com frequência. Sou como um espelho rachado, prestes a se partir. É pesaroso para meus finais momentos ser um peso a mais para minha amada esposa, a quem desejo toda a felicidade em minha postmortem. Eu preciso dizer o quanto a amo e a amei antes de ir.

 Estou fraco e contabilizo cerca de 43 horas restantes no meu bolso. O jogo está acabando? Não sei o número do doutor.

 Tentei auto-remediar-me com efeitos placebos apenas com o emprego de táticas psicológicas, mas meu corpo já não resiste muito. Incrível como essa fraqueza geral veio tão de súbito, como uma gripe. Minha voz está fraca e escrevo isso com o esforço máximo que me compete aplicado nas mãos.

 Eu sorrio para o meu cachorro, em sua sã alegria ao me acalentar com sua presença. Sua cauda perde-se na sombra que sutilmente esgueira-se ao redor de mim, no meu leito de morte, nessa cama moribunda que deito em minha casa. Minhas pílulas parecem homeopatia, meu organismo não sente nenhum efeito. Minha tosse está piorando.

 Um certo desespero acometeu-me ao deparar em acordar numa Sexta-Feira. Há uma semana o doutor sentenciou-me 7 dias de vida. Meu coração bate freneticamente como a de um garoto atlético, e meu peito inteiro dói. Eu não consigo respirar. Minha mulher me trouxe mais remédios e não conseguiu ligar para o médico. Tentei levantar-me e minha fadiga foi tão rapidamente exaurida que mal tive tempo de sair de meu quarto. A sombra já cobre-me a visão da porta, e a permeia as extremidades de todo o cômodo com a sua ausência de luz completa.

 Restou-me passar o dia inteiro deitado, o que eu detesto. Morrer de inanição? Droga, eu poderia estar morrendo pulando de paraquedas pelo o menos...

 Não sinto vontade de ir ao banheiro, de comer, apenas bebi meus remédios, escrevi e vegetei, como se ensaiasse para o que faria para sempre, até que o último átomo de meu corpo fosse decomposto. Eu sou um homem que aceita seu destino. Meu médico estaria errado se eu morrer agora. Ainda tenho 9 horas de vida. A sombra, antes tímida e sutil, agora abre suas asas e estende seus braços. Seu sorriso é obscuro, sua aura suga-me. Eu a consigo ver, e ela também. Sua natureza amistosa me compele a aceitar seu aceno com serenidade.

 Minha mulher saiu há algumas horas para cuidar de alguns documentos meus na agência bancária. Acredito que passará no mercado depois.

 Me restam, eu diria, cerca de 6 horas de vida. Meu cachorro dorme deitado no chão ao lado de minha cama. O médico não me retornou, e eu não consigo reunir forças para procurar onde minha mulher tem seu número anotado para ligar-lhe. Eu me sinto na ferroviária, recebendo o anúncio antecipado de minha hora de partida antes do trem chegar à plataforma. Eu sei que este trem contêm o meu assento reservado nele. Eu já me sinto sentado, viajando neste trem, que desliza pelos trilhos em câmera lenta, prestes a se chocar na parede escura no final de um túnel sem iluminação. E o trem adentra essa parede negra, silenciosamente, como se ela fosse um portal, e tudo fica completamente escuro e quieto. Para sempre.

 Eu ouço o telefone tocar na sala de estar. Não há ninguém em casa, eu continuo deitado, me sinto tão mais franzino para levantar-me e atender à ligação. Acredito que já escrevi mais do que o suficiente, embora não sei o motivo de esta-lo fazendo. A sombra me acena mais de perto, sua nitidez está espantosamente maior. Eu posso encará-la nos olhos e cumprimentar-lhe.

 Eu ouço o telefone tocar mais uma vez. Pode ser meu médico. Será que ele tem notícias a respeito do exame que faltava? Depois eu peço para minha esposa lhe retornar. Eu adoraria dar-lhe um último beijo e falar o quanto a amo, eu não hesitaria mais nem um segundo. Eu adoraria ligar para o meu pai e declarar-lhe, com toda a coragem que emerge e mim, a minha admiração à ele, e chorar de felicidade sem motivos, pois muitas lágrimas de dor já me acometeram nessa última semana. Adoraria levantar-me sem dor, de sair correndo pela calçada. Daria tudo para poder genuinamente criar novas amizades e laços duradouros, mergulhar em águas cristalinas oceânicas, e contemplar os últimos momentos sorrindo. "Morra grande", eles dizem. Me sinto, no entanto, muito fraco e sonolento novamente. Preciso do descanso na sombra que meus olhos buscam ao se fecharem. O telefone toca novamente... Melhor eu descansar um pouco.

10/03/2016

Na rota para o necrotério

Diz-se aos ventos que se uma ambulância, em alta velocidade na estrada, de repente desliga a sirene, significa que o paciente a bordo morreu. Você já deve ter ouvido falar disso. Provavelmente também já viu alguma viatura da ambulância, correndo pela rua em meio aos carros, com a sirene desligada. Essa ambulância carregava um cadáver que não conseguiu chegar a tempo vivo no hospital, morto durante o trajeto.

A lógica é essa: se o paciente faleceu, não há urgência em chegar ao hospital. Logo, a sirene é desligada. Pensava eu que minha destreza racional seria tão infalível quanto a lógica apresentada na sentença anterior.

No dia em que minha mente era mergulhada em doses colossais de compostos etílicos, as imprevisíveis consequências passaram-se desapercebidas. Totalmente afetado, meu sistema nervoso central era uma entidade paralela coexistindo em meu corpo, não mais obedecendo às ordens das sinapses destruídas do meu cérebro.

Devo justificar-me, contudo, que não sou e nunca fui um alcoólatra. Meus passos trôpegos e minha mente entorpecida foram resultados de uma série de episódios que julgo ser válido usá-las como pretexto para esse fatídico dia.

A recém morte do meu pai havia me arrasado, de tal modo que nunca havia sentido antes. Descobri um afeto e admiração por ele nunca antes expressada por mim. Esses sentimentos reprimidos me criaram uma profunda angústia e remorso por nunca tê-los deixado conscientemente chegar aos seus ouvidos. Tal mágoa corroeu-se a tal ponto que nem mesmo as correntes do tempo a curaram. Meu espírito começou a ser tragado por ter perdido para a eternidade a chance de dizer pela primeira vez "eu te amo" para meu ascendente paterno.

Os dias de trabalho tornaram-se mais difíceis, minha produtividade em declive, minhas contas em ascensão, meu relacionamento oscilante.

A fim de evitar prolongamentos: eu comecei a beber antes do serviço, no horário de almoço, depois do serviço, e constantemente aos finais de semana. Após uma sucessão de crises, minha namorada me deixou. O que já deixava meu emocional fora do eixo agora definitivamente o expulsava de sua órbita ao redor dos perímetros da minha sanidade, e minha fraqueza agora já manifestava-se como apoio o consumo excessivo de álcool.

Eu estava na rota direta para o precipício.

O fatídico dia era numa Quinta-Feira. No dia em que eu deveria, rotineiramente cumprir, como até então cumpria, minha ida e volta ao trabalho conforme minha escala de horário, fora pela primeira vez quebrada. Eu saí de casa, e não desci no ponto do meu local de trabalho. Minha mente já não estava sóbria, mesmo sem nenhum álcool ainda em meu organismo. Ela pairava além dos limites da capacidade cognitiva de um ser senciente e são, sem nenhuma base racional ou emocional para se sustentar da lógica, do pensamento crítico ou analítico. Eu apenas estava seguindo o caminho do meu próprio desespero.

Noto então, agora, que eu não estava na rota direta para o precipício. Eu já havia caído nele.

Encontrava-me, portanto, - no horário onde supostamente eu deveria estar entrando pelas portas do prédio do meu trabalho - nas ruas da cidade onde os bares são preenchidos a noite pelas almas perturbadas de corpos sórdidos que vagueiam por lá, em busca dos destilados que preenchem a vilania de seus demônios. Entrei no primeiro botequim e pedi minha primeira cerveja, com a falsa pretensão ilusória de que minha vida estaria ótima e repleta de motivos para comemorações.

Em poucos minutos eu me encontrava na terceira long neck, ingerindo-a ininterruptamente, recostado ao balcão do bar, como se eu fizesse dali minha própria balada pessoal durante pleno dia ensolarado de uma quinta feira. Eu conversava com o barman, com os transeuntes que passavam em frente e com os ocasionais clientes daquele estabelecimento. Não me lembro se foi a partir da sexta ou sétima garrafa que minha memória começou a falhar. Minha tolerância para o álcool sempre foi muito alta, portanto ainda me recordo decidir-me que cerveja não era o suficiente. Solicitei ao barman uma dose pura de cachaça do centro-oeste, e prontamente fui atendimento, tão rápido quanto virei o primeiro copo. Os dois outros copos foram consumidos na mesma velocidade. E após estes minha memória é um eclipse de tonalidade negra imensurável.

Acordei deitado na calçada cerca de três horas depois, tempo grande o suficiente para que desse grande margem de imaginação para o que pudesse ter acontecido durante essa lacuna de amnésia. Não sei se de fato dormi, ou se meu cérebro apenas havia recuperado parte de sua sobriedade. Não sabia onde estava. Ainda era de dia. Minha embriaguez não passara. Meu abalado emocional solicitava mais álcool. E assim eu o fiz.

Minhas próximas memórias são difusas e confusas. Eu lembro que brigava com uma mulher desconhecida por não notar em mim enquanto passava, ameaçando enforcá-la com gestos enquanto uma mão segurava um copo com um líquido marrom-glacê (conhaque, provavelmente). Lembro-me de tentar chamar cachorros na praça para beijá-los. Também me recordo de beber um copo d´água, porém a esse ponto o céu perdia sua cor azul e era abraçado pela pretidão cósmica.

É difícil descrever cronologicamente os eventos deste dia. Peculiar dia em que senti o amargo gosto dos meus sentidos serem nocauteados pelo excesso alcoólico, até não restar nada exceto total escuridão. A noite, eu ainda estava rua, em becos desconhecidos, abordando estranhos, sendo abordado por estranhos, ameaçando e vagando cambaleante para os confins da minha perdição, enquanto meu corpo lutava por um resquício de funcionalidade para me manter vivo.

Meu consumo de cerveja, destilados e sabe lá mais o que - durante este fatídico dia inteiro - não apenas me direcionou diretamente aos trilhos da minha condenação. As paredes do precipício já haviam sido rompidas, e a queda se encontrava ainda mais funda, além dos limites do abismo.

Eu estava na rota direta para o necrotério, sendo carregado dentro de meu caixão, para o despejo final do meu corpo desfalecido e minha fétida alma, com rins e fígado putrefatos, decompostos de dentro pra fora devido a minhas pútridas ações enquanto vivo. Tomei consciência disso quando me descobri estar dentro de um lugar fechado, deitado sob uma prancha rígida, cercado de aparelhos e pessoas ao meu redor, enquanto o ambiente cambaleava em adição à minha própria visão turva e confusa. Meus sentidos não funcionavam, meu cérebro sentia os ecos de uma dor indescritível, eu não conseguia enxergar em cores, e meu corpo clamava por misericórdia. Eu agonizava em cada centímetro da minha existência física.

Como eu fui parar lá ainda continua um mistério. Quem chamou a ambulância talvez nunca saberei.

Eu ouvia vozes de humanos tentando me manter vivo. Eu senti o cheiro do meu próprio sangue. Eu ouvi os ecos insuportáveis de uma bigorna em minhas orelhas, a condenação pelos meus atos percorrendo todas as minhas entranhas. Eu pude sentir minha respiração voltar a funcionar após experimentar o vácuo da inexistência, enquanto a ambulância movimentava-se por estradas desconhecidas rumo ao meu túmulo. Eu, contudo, não pude ouvir uma sirene ligada. Fui somente atingido pela lucidez na minha consciência ao ouvir, com meus sentidos ainda debilitados, uma voz feminina gritando para o motorista "Ligue a sirene de volta, ele tá vivo!".

Eu soube que, a partir deste momento, eu senti o gosto da morte que infringi a meu próprio organismo, por pura e simples irresponsabilidade inconsequente. Não há outra justificativa aqui.

Acordei no hospital, mais de doze horas depois. Eu não quis saber dos detalhes, Eu não sei exatamente o que aconteceu comigo. Assim que me senti melhor, dispensei explicações das enfermeiras e dos médicos e dirigi-me diretamente para minha casa. Eu tinha tido um happy hour e tanto.

Racionalizando sobre este fatídico dia, não sei o que isso me trouxe, exceto a consciência da amargura e do arrependimento, e de conhecer de perto a rota direta para a minha própria cova. Agora, apenas sei que nunca mais repetirei isso. Provavelmente não precisarei mais. Provavelmente eu não serei demitido, depois de ter faltado para ir afogar minhas amarguras internas. Provavelmente você já viu alguma viatura da ambulância, correndo pela rua em meio aos carros, com a sirene desligada. Provavelmente era eu que estava lá.