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20/04/2013

Soldado das trevas


 Mais escuro que a própria noite, o soldado ruma ao seus deveres. Como um sopro na pálida madrugada, ele se deslocava, tão silencioso quanto apenas ele próprio. Não menos humano depois de tudo o que presenciaria e faria, porém tampouco mais robótico e desumano do que já era antes.

 Marchava e lutava em batalha, rumo ao cumprimento de seus objetivos. Sua vitória era iminente. "Por que simplesmente não morro e e me liberto dessa atrocidade?", pensa ele, na destrutiva penumbra. Seu desejo era ser morto. Não por honra, mas por desgosto, por estar participando disso, e não ter outra escolha, a não ser assassinar. Não havia, entretanto, tempo para pensamentos filosóficos em meio a matanças e carnificinas em nome de anseios políticos.

 Uma sombra na escuridão, tão negra que até a morte temia-o. Fazia-se mais obscuro conforme cumpria com perfeição os planos. Seu coração foi vendido para o reino subterrâneo, onde pertencia ao supremo do andar de baixo. Seu corpo não mais bombeava sangue, apenas processava ordens. Mais duas, três cabeças. Sua completa negritude apenas absorvia a luz, tornando-o mais escuro do que um apocalíptico eclipse. Mais desalmado se tornava a medida que prosseguia com êxito sua jornada na batalha contra irmãos da própria espécime, separados apenas por nacionalidade.

 Nem os frequentes lampejos ocasionais iluminavam-o, que permanecia dominado pela pretidão. Tampouco as flamas das batalhas acendiam qualquer traço de luz em seu rosto. As cinzas e fumaça da aniquilação, da qual ele era protagonista, apenas realçavam mais seu medonho aspecto. Mais quatro inimigos abatidos. Mais negritude em sua aura que enegrecia seu corpo desalmado.

 Sua vitória era cada vez mais iminente. "Estou aqui, inimigos! Matem-me e me libertem!", gritava ele, em meio a atrocidade da qual ele não poderia ser jamais liberto, até que as incessantes explosões, disparos, gritos e terror cessassem.

 Não era, agora, um ser vivo, um corpo de carne e ossos, uma alma racional e emotiva. Apenas era. Você sabe que ele está ali porque você não o vê, enxergando apenas um espectro. Assim como um buraco negro. Nem a mais forte das luzes poderia iluminar aquela vasta escuridão, que não era nada além de um vulto sobrenatural.

 Sem rosto, sem feições. Apenas preto. Nem o mais profundo escuro do submundo era capaz de deter aquele desprovimento de iluminação. Não haveria inimigo que pudesse abatê-lo, nem adversário presente nas redondezas que sobreviveria para comparecer ao seu réquiem.

 Todos os seus objetivos foram cumpridos. A vitória era deles. "Por que saí dessa atrocidade vivo?" pensa ele, na melancólica destruição humana. Seu desejo era morrer. Não por honra, mas por desgosto, por ter participado desse ato tão vil. Mas agora era tarde. Sua transformação já estava completa, não lhe restando mais nada. Exceto ser uma sombra vagante a tormentar as pessoas, metamorfoseado eternamente em um soldado das trevas, aparecendo em janelas e espelhos alheios. Apenas em busca de um reflexo da qual possa iluminá-lo novamente.

11/04/2013

Segredo sagrado


 Ciganas, mulheres que não choraram, feiticeiras, judias, hereges. Todos aqueles que agiam em desacordo com os dogmas da igreja. Homossexuais, blasfemadores, protestantes, bígamos. Todos sendo queimados. Há anos sendo inquisidor, realizando o ofício de meu Deus, o único e absoluto. Enviando a alma daqueles infiéis para o soberano do submundo desde 1557, não tenho mais certeza se estou plenamente de acordo.

 Há tanto tempo lutando contra a heresia, muitas bruxas eu já condenara. Todos eles eram realmente bruxos e hereges? Suas condenações foram justas?

 Não sei se é sinal divino ou criação maligna de Lúcifer. Apenas parece que estou perdendo minha sanidade. Fiz coisas que não deveria saber. Não quero mais levantar ao acordar pela manhã. Sei de coisas que deveria desconhecer. Atos que, sem dubiedade, já cedem minha alma á agonia das chamas infernais. O amor que eu tinha no começo, em acusar e julgar bruxas e satanistas, nos últimos tempos, só me trouxe desgosto e um estranho sentimento infeliz. Depressão, talvez?

 O que está aconteceu comigo? Por que tanto desprazer? O que fiz? Tantas histórias presenciei, tantos sigilos tenho. O que me trouxe onde estou agora é o que chamo de "segredo sagrado".

 Poucos meses atrás. "Jeanne Rodriguez, estás sendo acusada de bruxaria perante a corte religiosa. Como você se julga?" assim proclamava eu, perante o altar. A acusada, em prantos, respondia "eu sou inocente! Eu nunca fiz mal a ninguém!". Foi dada a ela uma chance de sobrevivência caso ela delatasse alguma outra bruxa, para esta também ser condenada. Propôs então Jeanne:
 - Apenas posso acusar a tal bruxa se ficarmos a sós, inquisidor.
 - Mas que papo tolo é este, bruxa? - assim disse eu, impaciente.
A acusada não se fez de rogada e prontamente explicou com palavras fajutas, mas que me convenceram. Embora tenham objetado, proclamando "Êxodo 22,18: Não deixarás viver a feiticeira", lá estava eu, com a suposta bruxa, em privado, quando ela abre o jogo. Sem cerimônia, ela começou a se jogar pra cima de mim, com tal promiscuidade que, eu, absinto de prazeres sexuais, não deixei de resistir. "Exorcize a bruxa, Juan Guerrera, queima-me na fogueira", assim dizia Jeanne, despindo-se. Após consumado o ato do coito, fui ameaçado:
 - Sou inocente de bruxaria, e você também é inocente em ter copulado comigo. Vamos manter assim, pode ser?
 - Blasfemadora, feiticeira! - protestei, embora nem eu acreditasse nas minhas palavras.
 - Conto com a sua palavra. - assim escapou Jeanne, da acusação de bruxaria, onde fui obrigado á acusá-la de inocente.

 Esse ainda não é, no entanto, o "segredo sagrado". Foi somente como ele começara.

 No prosseguimento do julgamento, ela foi liberta. Questionado pelos arcebispos e demais inquisidores, retruco:
 - Não se preocupem com nada. Eu mesmo encarrego-me de buscar o vitimizado. E ela não era bruxa de qualquer jeito. - respondi, de forma vaga e um tanto distante. Imediatamente parti em busca de Jeanne. Alguma coisa me fez ir rumo a ela. Apenas posso estar possuído pelo demônio, mas sei que não é isso. Algo me domina. Preciso vê-la. Procuro-a pela cálida tarde ao redor do vilarejo, perguntando aos moradores da região. Já cansado, franzindo a testa enquanto transpiro debaixo da forte onda de raios solares, consigo enfim as coordenadas da morada de Jeanne.

 Encontro-me diante de sua porta, e em instantes, lá está ela. Minha aura acende pelo lampejo de sua presença. Rudemente, ela pergunta "O que o senhor deseja?". Respondo-lhe, mesmo impondo-me à todas as minhas convicções e ao Senhor, declaro meu desejo por ela. Talvez aquele acontecimento sexual mexera com minhas emoções. Queria-a. E assim fazia questão de objetivar, pois por dias e dias fui-lhe até a porta para que me concebesse uma chance. Até que um dia ela não fechou a porta brutalmente em fúria, muito pelo inverso. Começou a sorrir. E agarrei-a, saboreando seus lindos lábios, em volúpia.

 Nosso amor, por muito tempo, fora recíproco. Todavia, um dia ela adoeceu.

 Sem pestanejar, fui a mando dela ao bosque, seguindo suas instruções, em busca da cura. Até que deparei-me estar envolvido no tão terrível segredo. Oh, meu Deus! Eu estava tão abalado em estar traindo a mim mesmo, a Deus. Por que eu apenas não rezara? No entanto, estava me sentindo tão vivo! Estava extasiado. Eram emoções opostas. Queria apenas salvar minha amada. E finalmente cedi à blasfêmia. Sou completamente um herege, um hipócrita, traindo ao Pai. Estava oficialmente tornando-me um bruxo! Tudo em nome da insana paixão, onde faria qualquer coisa para trazer saúde e vigor de volta para minha angelical Jeanne. Colhi as plantas e ervas necessárias, reuni os ingredientes demandados e realizei a poção de cura, em meio ao jardim. Tudo conforme seus ensinamentos.

 Porém, agora, amarrado a esta tábua de madeira no altar, nada mais me resta do que remorso. A heresia reinou perante meu coração cego, e não adianta negar nada mais, apenas me render ao tormento eterno. Agora tudo é inútil.

 Ciganas, homossexuais, blasfemadores. Há anos, todos os dias, alguns tiveram sua vez. Hoje a vez é minha. Sou o próximo a ir a julgamento. Fui flagrado e capturado no bosque, após terminado o preparo do remédio. Eles observavam o segredo tudo desde o começo, escondidos sob os arbustos. Estavam lá a mando de Jeanne. Deveria eu desconfiar de sua farsa desde o começo. Pelo o menos ela também está sendo julgada. Por outro inquisidor, de certo. Agradeço ao desconfiado Sanchez, amigo cardeal que a capturou também. Nunca deveria ter confiado naquela suja e traiçoeira bruxa Jeanne. Ei de reencontrá-la em breve, nas flamas agonizantes e incessantes do inferno.

04/04/2013

Ao meu eu do passado

 A mensagem abaixo foi escrita pelo meu eu do futuro para o eu do presente. As palavras são de um futuro ainda não definitivo. Ou seja, em um futuro que ainda não aconteceu, e nem necessariamente irá. Mas que pode acontecer.

 "Olá, eu do passado. Apesar de ti ter vivido do ócio e da procrastinação durante toda a sua juventude, gostaria de dizer que o filme da sua vida teve um final feliz. Apesar de ter alimentado o seu sedentarismo enquanto entupia-se de chocolate acessando compulsivamente o Facebook; apesar de ter mantido as mãos coçando a região testicular por extensos períodos de tempo quando devia estar botando-as na massa (mas sem ter beliscado o escroto antes), gostaria de dizer que sua vida teve uma reviravolta. Embora tenha vivido com pouco regojizo, muito imediatismo e conformismo, a cena "Fim" da sua trajetória terminou com uma música alegre e de alto astral, enquanto a câmera lentamente diminui o foco, enquadrando uma linda paisagem e terminando com um fade-out.

 Seus inúmeros interesses, de gosto pelo desconhecido, de sair da zona de conforto e evoluir como indivíduo, foram essenciais para sua jornada à prosperidade, embora você nunca pensaste muito no seu futuro profissional e econômico.

 Apesar do seu medo de abordar as garotas e e incapacidade de conquistar as mulheres, gostaria de dizer que você finalmente encontrou seu amor, sua alma gêmea. Gostaria de dizer também que você, apesar da sua falta de pró-atividade, alcançou posições no seu emprego que, além de te dar muito dinheiro, também lhe oferece muito prazer, pois você se diverte e ama o que faz. Gostaria de dizer que a sua vida amorosa vai muito bem, seu salário é bom e estável, sua vida pessoal é maravilhosa, graças ás suas constantes conquistas, sabedoriaseu crescimento pessoal e corpo e mente são.

 Mas, principalmente e muito importante, gostaria de dizer que tudo isso é verdade.

 Gostaria de dizer que tudo isso aconteceu, mas não aconteceu. O ócio e a procrastinação que consumiu sua juventude foi de grande valor. O filme da sua vida é abdicado de clichês convencionais. Pois o final não é feliz, e a cena "Fim" foi dolorosa e lenta para o telespectador. Grande merda foram os seus interesses, sua busca pela sabedoria e conhecimento, e todas essas homoafetividades. Na hora de procurar um emprego, você se fodeu. Sabe qual é o teu emprego? Câmera-man de filme pornô. Como isso pode te deixar feliz? Além de não te dar muito dinheiro, você só está filmando o prazer, e não participando dele. Assim como foi com a sua vida inteira.

 Seu medo de rejeição e a sua falta de iniciativa em se desafiar e errar para evoluir e aprender foram fatores essenciais para teu fracasso. Apesar de você ter tentado superá-los, de nada adiantou. O "amanhã eu falo com ela" nunca veio, porque ela foi embora, enquanto você ficou preso ao "hoje". Você se casou, no entanto. Mas sua mulher não te respeitava. E te largou quando soube que você chorava vendo fotos da sua antiga paixão, a Beatriz.

 Sua família é desestruturada. O relacionamento com seus pais ainda são uma merda. Você comprou seu sofá nas Residências Jamal, sucessora das Casas Bahia, que faliu após a crise econômica de 2018. A academia que você queria tanto fazer ficou apenas nos planos. Você agora está obeso, seu corpo e mente estão uma bela montanha de defecação jurássica. A guitarra que você tanto procrastinou para aprender não te levou a lugar nenhum. Seu crescimento pessoal? Você engordou mais de quarenta quilos.

 Agora estou fudido, por sua causa, enquanto seus filhos assistem Big Brother. Sim, você teve filhos e BBB ainda existe. É contigo decidir qual dos dois é pior.

 Você mal sabe cozinhar, trocar uma lâmpada ou educar seus filhos. Tudo porque seu psicológico foi massacrado durante todos esses anos. Escreveria mais, no entanto tenho que dormir. Amanhã cedo gravarei "Bárbara Sápi e o ET super-dotado". Roteiro por Valeska Popozuda. Sente o naipe. Enfim... a mensagem que quero passar é:

 Até quando você vai parar de deixar para amanhã o que se pode (e deve) fazer agora? Daqui há um ano você desejará ter começado hoje, portanto, comece agora. Mexa esse cu gordo da cadeira e, assim que terminar de ler isso, faça algo para mudar seu futuro, e mudar o meu presente. Esse lixo que você me fez tornar não pode continuar existindo.

 Carinhosamente, ao meu eu do passado"

 É... acho que é melhor eu começar a colocar em prática os meus planos.