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12/01/2015

Consulta psicológica

Desviou o olhar por um instante, concentrou-se mentalmente e iniciou seu raciocínio.

 "Não sei por onde começar. Sei lá, o que eu poderia falar? Não são problemas de verdade. Está tudo aqui dentro. São apenas barreiras psicológicas. Não é como se eu tivesse um pai alcoólatra com câncer renal ou uma casa caindo aos pedaços. Eu não tenho nenhum tipo de síndrome ou doença genética rara. Não sou deficiente físico... pelo o menos todos os meus membros ainda funcionam, se é que me entende". Soltou um leve riso sarcástico pra dentro.

 "E ainda sim, me sinto acorrentado, como se essas dificuldades criassem um campo de força que me aprisionasse. Obstáculos mentais acabam se tornando físicos também."

Respirou profundamente, e prosseguiu, enquanto ainda restavam 21 minutos da consulta:

 "Eu vejo o mundo com a perturbação que ninguém vê. Quando eu passo pela cidade, eu imagino os prédios corroídos daqui há alguns séculos, quando a humanidade estiver extinta. Eu também me sinto incapaz de me relacionar com as pessoas. Minha última namorada... ela era linda, mas depois de uns 2 meses eu comecei a ficar cansado... ela tinha bigode. Ralava na hora de beijar. E não sabia como manter uma boa conversa, sabe. Era uma merda, mas o pior foi que ela me deu o chute primeiro. Disse que queria explorar novos horizontes. Quando ela me disse isso eu fiquei muito chateado... mas hoje eu só fico puto, porque agora entendi que ela quis dizer que tava afim de chupar buceta! Dá pra acreditar? hahahaha"

 Enquanto discursava, mantinha seu sorriso e uma gesticulação informal, demonstrando total serenidade, embora ainda se alimentasse do receio. Tentou retornar á um tom mais sério.

 "Existem no mundo pessoas com tantos problemas. Eu tenho emprego, eu tenho uma casa... não tenho namorada, mas não preciso de dores de cabeça. Especialmente depois ter sido trocado por outras mulheres... Enfim... Eu-eu tenho saúde razoável..."

 Parara alguns segundos para reflexionar e alinhar sua linha de pensamentos.

 "...Mas ainda me sinto infeliz. E eu não quero buscar a felicidade. Eu não preciso ser feliz. Eu só preciso parar de me odiar, ok? De alimentar esse amargor e o ódio constante. Felicidade é um conceito egoísta. É a busca de quem tá pouco se fudendo!"

Aumentara razoavelmente seu tom de voz nesta última palavra.

 "Os problemas dos outros parecem tão banais perto dos meus. Sabe como é.. a grama do vizinho é sempre mais verde. O pau do negão é sempre mais longo. Por outro lado, ás vezes meus problemas são ridículos e risíveis. Você consegue me entender? Eu..." pausou para bufar. "Eu acho que a mente tem um poder magnífico sobre as nossas vidas. Não de forma sobrenatural, mas científica. O que pensamos controla nossas atitudes, nossa maneira de ser, nossa maneira de viver. O abstrato se converte em concreto, entende? Grandes revoluções e criações na história humana surgiram de simples ideias. De conexões sinápticas na massa cerebral de alguma pessoa."

 Pausou novamente para realinhar o seu eixo lógico, parecendo desnorteado e desesperado para conseguir se expressar.

 Ele tinha mais 17 minutos de consulta.

 "E-eu... eu acho...  Ahhh... eu também acredito que a mente também pode ser uma inimiga. É o que eu sinto ás vezes. Uma eterna guerra entre a minha consciência e os meus pensamentos mais profundos. O que eu quero dizer é que meus pensamentos me aprisionam. E toda vez que tento sair da minha zona de conforto, acaba sendo um esforço em vão e eu volto para o meu casulo de isolamento, para a estaca zero. Eu continuo preso neste ciclo e não sei exatamente o que fazer. Enfim... o que você acha?"

 O paciente, confuso e engasgando com suas próprias palavras, tentou achar algo para dizer:

 "Me desculpa, doutor, como assim?

 "Eu achei que você pudesse dar sua opinião sobre isso."

 "Eu vim pra falar do MEU problema, doutor..."

 "Certo, certo... desculpa, eu acabei me desconcentrando um pouco, hãm... vamos lá. O que você está fazendo em relação ao seu problema?" perguntou o doutor, sem nem mais lembrar qual era a maldita situação do paciente.

 "Eu tenho bebida muita água, doutor. Mas eu me sinto incapaz, ás vezes, de fazer o que é preciso. Sabe, eu tento acordar mais cedo, me alongar, comer mais frutas... mas eu continuo travando."

 "E o que você acha que seja isso?" perguntou vagamente o doutor.

 "Não sei, doutor, o que você acha?"

 "Olha... não sei por onde começar. Eu também me sinto incapaz de tomar as atitudes necessárias na minha vida. Sabe, certas coisas que devemos mudar em nós mesmos, que sabemos que fazem mal tanto para nós quanto para os outros. Eu, por exemplo, me canso das pessoas rapidamente. Uma vez mandei um paciente tomar no cu logo no final da primeira consulta..."

 O doutor respirou fundo e deu avanço ao seu raciocínio. Ele tinha mais 15 minutos de consulta.

07/01/2015

Kayke Rockstar

"Quem é o próximo?" perguntou o diabo, com sua voz rasgante e grave, em um tom nada amigável.

"Sou eu, senhor."

O diabo, com um sorriso sarcástico no rosto, mediu o corpo esguio e frágil do rapaz. Ambos entram no escritório do príncipe das trevas.

"Kayke Brito, né? Você que marcou hora comigo, docinho?"

"Sim, senhor, diabo."

"Sente-se, seja CALOROSAMENTE bem vindo" imediatamente rindo satanicamente após proclamar tal estúpida aneodota.

Kayke expressou um leve riso de incômodo. Com as fichas em mãos, o diabo repousa seu tridente sob as paredes em chamas de sua sala infernal, com uma expressão imutável de sarcasmo em seu rosco diabólico.

"Aqui diz que você deseja se tornar uma celebridade, um famoso, e que me veio procurar para que eu lhe conceda este... favor."

"S-sim, senhor, diabo."

"Desculpa, você está confortável? Quer que eu aumente o ar condicionado?" gargalhando de imediato, fitando seus olhos de sarcasmo nos de Kayke. "Ou você tá com frio? Quer que eu acenda a lareira?" explodindo em risos novamente.

"Piada boa... Então... o que você tem para me oferecer, garoto?

Kayke suspira e, visivelmente desconfortado, começa:
"Sabe, senhor..."

"Diabo, por favor."

"Como?"

"Tenho muitos nomes, não me chame de senhor. Pode me chamar de Diabo, Demônio, Belzebu, Belial, Capeta, Capiroto, Cramunhão, Coisa Ruim, Lúcifer, Leviatã, Mefisto, Mefistófeles, Tinhoso, Satã, Satanás... como quiser, eu tenho inúmeros nomes e representações. Enfim... o que você tem a  oferecer?"

"Eu... eu queria muito fazer sucesso, ter dinheiro e fama, e eu acho que você é a melhor opção pra fazer isso acontecer, senhor... Diabo Demônio Belzebu Belial Capeta Capiroto Cramunhão Coisa Ruim Lúcifer Leviatã Mefisto Mefistófeles Tinhoso Satã Satanás."

A face antes sarcástica agora dera lugar a um puro sentimento de desprezo pela alma ingênua que sentava em sua poltrona demoníaca. Kayke permanece sem reação, enquanto o progressivo desprezo do diabo permeia a sala. Ele ajeita sua gola e coloca as mãos em seu tridente.

"E o que você tem para me oferecer?"

Kayke desesperadamente tenta prosseguir sua argumentação.

"É difícil tentar ser um famoso sem o apoio da mídia, da imprensa... o que eu to querendo dizer... é difícil ser independente nesse meio, é tão competitivo..."

"Cara..." interrompe o diabo, impaciente. "Você... por que você não procura um emprego e para de encher meu saco satânico?"

"É que eu fui demitido..."

"Ai meu tridente... e você pede socorre á mim pra resolver a tua vida de merda? Sem nem ao menos ter algo para negociar?"

Kayke se revolta, porém segurando parcela do que sente.

"Qualé seu capeta, eu desci todo o caminho até aqui. Eu não vou levar nada?"

O diabo exala uma de suas entusiásticas e quentes risadas, que fez Kayke sentir seu bafo infernal do outro lado da escrivaninha do Excelentíssimo Capeta.

"Sabe o que tu vai levar daqui, Kayke? Uma chifrada do capeta no olho. E meio metro de tridente no rabo"

Em poucos segundos, seu sarcasmo se transformara em apatia.

"O que eu posso lhe dar? 15 anos de vida, uma alma, um bode, uma virgem?"

O diabo, dessa vez, apenas expira uma risada de desdém, já impaciente e mau humorado.

"Você vai ter que ser mais criativo que isso..."

Um breve silêncio se instala, e o diabo expira uma breve risada novamente.

"Eu sou um homem de negócios. Eu tenho os melhores advogados e empresários aqui, trabalhando pra mim. Eu sou uma força da natureza. Eu não perco meu tempo com gente como você. Eu sou o rei do inferno, aqui eu faço bolo sem precisar de forno, cara."

"Se você é um homem de negócios, o que você precisa pra me tornar um rockstar?" disse Kayke, abalado, embora ainda persistente.

"Rockstar? Ainda existe essa babaquice? O que você é, um vocalista de boy band? Esse seu cabelo não me engana, moleque... você é daqueles que usa o microfone pra cantar e depois pra socar no brioco? Ein? Haha... Eu conheço esse tipo... existem muito deles aqui no meu reino, garoto."

O diabo estava com a tão costumeira face sarcástica novamente, se deleitando na arte de rebaixar os outros moralmente.

Relutante, Kayke ainda tenta contra-argumentar em prol de convencer o diabo:
 "Na verdade, eu queria formar uma banda de heavy metal. Eu só preciso de sua garantia que dará certo."

 O semblante diabólico do Senhor Belzebu transfigurou-se inteiramente, como de total desdém, passasse para um súbito interesse pelo garoto.

 "Heavy metal, hãm?" disse o diabo. "Você tá zoando com a minha cara?"

 "Não, cara, eu quero ter uma banda de metal"

 "Sabe, eu já tive uma banda de metal antes..." falou o diabo, como se repente quisesse puxar assunto. "Mas eu abandonei aquela banda, cara... os caras eram otários, não tinham o espírito rock 'n' roll. Um virou cristão e o outro começou a virar fã de Avenged Sevenfold... aí não dá né, eu caí fora. Eu conheço um espírito rock 'n' roll quando vejo um... eu criei o Ozzy Osbourne, porra. Eu também criei o Marilyn Manson, e me desculpo por isso, mas... era tão bom ter uma banda de metal. Viajar o mundo, espalhando a palavra. Parece que essa essência se perdeu..." o diabo fez uma pausa dramática e prosseguiu: "Você tem o espírito rock 'n' roll, Kayke Brito?"

 "Sim, eu tenho!" respondeu o Kayke, segurando sua euforia e poupando suas palavras para que não acabasse falando besteira.

 "Eu não estou convencido."

 "Eu tenho o verdadeiro espírito rock 'n' roll do diabo em minhas artérias!" liberando toda a sua energia para fora dos pulmões.

 "Eu não estou convencido!" gritou o diabo. Sua sala já fora dominada por uma vibrante sensação de rock 'n' roll pulsando por entre as flamas queimantes daquele inferno.

 "Eu tenho o espírito rock 'n' roll concedido pelo diabo e quero ter uma banda de metal de sucesso concedida pelo próprio diabo!!!!!" a sala então estrondou em um barulho infernal de guitarras diabólicas, e tanto Kayke quanto o diabo explodiram em contentamento e se cumprimentaram com um forte aperto de mão satânico.

 A celebração continuou ao fundo, com as guitarras diabólicas e as baterias insanas incendiando a aura infernal do diabo, que propôs: "Eu lhe concedo a banda, mas eu terei que participar dela. Eu posso ficar no baixo, mas eu queria usar umas letras minhas também!"

 "Com certeza", sem hesitar disse Kayke.

 O diabo sorriu de felicidade, abriu a gaveta de sua escrivaninha e, com seu tridente, perfurou um tipo de papel e o jogou sobre a mesa.

 "Assine esta merda de contrato, que juntos teremos nossa própria banda de heavy metal com o verdadeiro espírito do metal. Tome esta agulha, despeje um pouco de seu sangue sobre a parte sublinhada. Agora, se me permite, senhor Kayke, com licença que eu tenho mais clientes pra apresentá-los ao tridente. Vamos ensaiar assim que possível. Mal posso esperar para tocar em uma banda de heavy metal novamente!!!!"

"Muito obrigado, senhor Diabo Demônio Belzebu Belial Capeta Capiroto Cramunhão Coisa Ruim Lúcifer Leviatã Mefisto Mefistófeles Tinhoso Satã Satanás."

O diabo, acompanhando Kayke até a saída, seu futuro companheiro de uma nova banda de metal, bateu em suas costas em um gesto amigável:

"Por você favor, me chame só de Levi"