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30/09/2018

Sobre o inominável

Todos estamos inseguros, com medo e cansados da violência, da velha política, da instabilidade social e econômica.

E, mesmo assim Bolsonaro, João Dória, Haddad (no lugar de Lula), Aécio e Dilma lideram nas pesquisas. Piora quando lemos: "No estado de São Paulo, os mais votados (para Deputado Federal) em 2018 devem ser Tiririca, Marco Feliciano, Eduardo Bolsonaro, Celso Russomanno e Kim Kataguiri"

Que revolta é essa, que se transformou em uma condescendência alienada ao votar nos mesmos velhos políticos ou em retrógrados que prometem "mudar tudo isso", mas que carregam consigo uma bandeira de ódio, conservadorismo e ignorância?

Nesse clima de indignação, Bolsonaro encarnou o papel de um herói, prometendo respostas mágicas para um povo desamparado, cansado do PT, da roubalheira e da ineficiência estatal, e que viu nele o portador de ares novos para a política. Nessa mesma mentalidade que Dória foi eleito, e hoje sabemos a farsa que ele é. Ou será que Bolsonaro vai mudar tudo isso? Eu não vejo nenhum motivo razoável para ter essa esperança. Bolsonaro tem, em sua carreira política, se mostrado bem fiel à manutenção do status quo e do establishment político, com um longo histórico corporativista e militarista. Por que seria diferente com ele presidente, ainda mais sofrendo tamanha rejeição e oposição (e não sem motivos)? Isso poderia ser certamente um forte impedimento à suas pautas, embora o Congresso, com sua dominância conservadora, pode facilmente se aliar ao seu governo. Não sei o que é mais assombroso.

É problemático (para dizer no mínimo), em primeiro lugar, suas declarações e atitudes explicitamente intolerantes, preconceituosas e ignorantes em relação à índios, imigrantes, gays, mulheres, negros e outras minorias. Ou suas exaltações à ditadura e seus torturadores - ignorando um período totalmente obscuro na história do país, com altos índices de inflação, violência, corrupção, desigualdade e evasão escolar (irrefutável evidência de que militares no poder não são prova nenhuma de nobreza e boa gestão estatal). No entanto, seus apoiadores sem problema nenhum relevam, negam ou, pior ainda, até mesmo concordam com tudo isso. Porém, apoiá-lo é também ignorar o seu evidente despreparo para assuntos importantes como economia, políticas internacionais, saúde, segurança pública e educação. Ele facilmente derrapa em questões básicas sobre esses assuntos, ou joga nas costas de seu ministro da economia, que mesmo que fosse o mais brilhante do mundo (não é), sozinho esse ministro não é capaz de fazer nada sem um presidente que não tenha conhecimento, experiência, articulação e jogo de cintura; que saiba fazer acordos e ter poder de influência no Congresso. Ele ter só 3 projetos aprovados (nenhum desses sendo de segurança pública, uma de suas principais pautas) em 27 anos como deputado federal talvez seja uma amostragem importante sobre sua expressividade e importância política. Nada garante que com ele na Presidência seria diferente.

Com um discurso totalmente raso e desconexo, ele consegue ser totalmente superficial em todas as suas propostas, com soluções simples e imediatistas para problemas graves, porém profundos e de múltiplas causalidades. Ser a favor da educação a distância para "combater o marxismo"? Os alunos saem da escola e mal aprendem a interpretar um texto. Sua posição a favor do armamento é uma política simplista totalmente infundada, uma proposta para resolver um problema estruturalmente complexo que envolve diversas variáveis socioeconômicas e educacionais. Aliado a isso, há a proposta da carta branca pra polícia matar sem culpabilização (apesar de já termos uma das instituições policiais que mais mata no mundo), receita perfeita para o desastre. Para combater o desemprego, ele defende menos direitos trabalhistas, além de ser contra a igualdade salarial de gênero e a favor da diminuição da licença maternidade, o que soa no mínimo ultrajante para um país cujas condições de trabalho já podem ser abusivas ou até análogas à escravidão. No seu oportunismo latente, abraçou o liberalismo econômico como forma de agradar ao mercado, embora ainda seja contra taxação de grandes fortunas e heranças, no mínimo tornando questionável que seu governo será destinado às massas mais pobres. Em relação ao meio ambiente, sua defesa de fusão dos Ministérios da Agricultura com o do Meio Ambiente é uma clara afronta ao ambientalismo e à conservação dos biomas brasileiros, já claramente em perigo e que poderão sofrer ainda mais nas mãos do lobby agropecuário, causando mais desmatamento, mais extinções, e mais impacto ambiental em grande escala (não obstante a isso, Bolsonaro também defende a irresponsável saída do Brasil do Acordo de Paris). O projeto de desenvolvimento nacional, quando inexistente ou vago, é no mínimo questionável ou duvidoso; seu plano de governo não tem sequer uma aprofundamento palpável para questões importantes, muitas vezes se atendo à espantalhos anti-Foro de São Paulo (e o usando inexplicavelmente como correlação para ter ocorrido mais 1 milhão de assassinatos desde sua fundação), anti-PT e anti-Marxismo. O perigo já foi amplamente difundido de Bolsonaro não representar a nova política, e sim um reacionarismo conservador, sendo ele e seu problemático plano de governo já escrachado até por veículos internacionais de renome como The Economist, Washington Post e The Guardian. Esse receio piora pela sua persona autoritária que flerta com o fascismo, cultuando as Forças Armadas, a hierarquia de poder, o nacionalismo exacerbado, condenando o pacifismo, a modernidade e o inimigo como algo a ser combatido pela guerra; usando de oratória simplória com apelos ao medo, ao uso da força; criando um clima de incerteza, sobretudo às minorias e aos moderados (estes ainda sendo acusados de vitimistas e de "isentões"), amedrontados de serem ainda mais marginalizadas e perseguidas por aqueles que o apoiem (incluindo grupos neonazistas), vendo na figura de seu "líder" um incentivo moral aos preconceitos destilados por ele.

Todo seu passado político o contradiz: por já ter sido aliado do PMDB e do PT em diversas pautas econômicas (seu "liberalismo" só surgiu recentemente), a favor de privilégios políticos, de guerra civil para mudar o país, além de supostamente ter feito lavagem de dinheiro pelo partido através de doação da JBS; de já ter confessado sua indisciplina quando servia no Exército; por já ter empregado funcionária fantasma com verba de seu gabinete; por declarar que usava auxílio-moradia pra "comer gente"; por se declarar um fiel cristão e pregar o ódio e a relativização do estupro; de se declarar patriota mas bater contingência para os EUA e defender entregar a Amazônia para eles; de ter votado contra o Plano Real, da proibição do nepotismo e do teto salarial no setor público, do fundo do combate à pobreza, além de, pasmem, já ter inclusive elogiado e apoiado a candidatura de Ciro Gomes em 2002 à presidência.

Atualmente, no entanto, Bolsonaro se aproveitou do intenso antipetismo e da credulidade para instigar o medo com seu tom militarista e intimidador, propagando ameaças invisíveis de um fantasma comunista inexistente, de um suposto kit gay e ideologia de gênero, e outros boatos que inventa ou perpetua (mas fake news é só quando é sobre ele). E agora lidera nas intenções de voto.

Tenho seríssimas dúvidas sobre ele ser minimamente defensável, e não vejo como ele vai diminuir a violência, a corrupção, o desemprego, ou melhorar a educação e muito menos como vai salvar a economia do país. Mas quem o apoia parece não estar ciente do seu questionável preparo e coerência ideológica e política, ou se cega à tudo isso, comprando ideias e conclusões absurdas pra suportar um raciocínio insustentável a seu favor, entre eles: "Ahh pelo o menos ele é ficha limpa", sendo que não é o único, e nem de longe esse é o único requisito para um candidato. "Pelo o menos ele vai acabar com a roubalheira", sobre esse mesmo candidato que foi aliado do PMDB a carreira toda e chamou Eduardo Cunha de herói, que hoje está preso. "OK, mas ele tem pulso firme e pelo o menos vai tentar salvar o Brasil", essa ideia deveria ser encarada com muito ceticismo, vindo de um deputado federal de carreira eleito pelo Rio de Janeiro, cujos resultados para combater a violência e a corrupção não têm sido sequer dignos de nota, além de outros motivos já apontados nesse texto. "Aaa mas ninguém mais aguenta o PT, vamos dar uma chance pra ele", que pra mim soa mais como uma tentativa ingênua e perigosa de brincar com o fogo, jogando o futuro de um país nas mãos de um candidato que mal consegue entrar em acordo com seu próprio vice (este com falas igualmente ou ainda mais chocantes), que demonstra total desrespeito à diversidade do ser humano, que não conhece seu próprio plano de governo, entrando em desavenças até com seu ministro de economia.

Óbvio que a rejeição do PT é enorme e sua volta ao poder é inaceitável, porém agora com Haddad em segundo lugar nas intenções de voto colocamos o país como refém e a população de mãos atadas. Na atual conjuntura, o ideal seriam candidatos conciliadores, que saibam apaziguar esse clima incerto, que tenham um projeto nacional estruturado e bem estudado, no caso de Marina Silva ou Ciro Gomes (embora obviamente eles não sejam perfeitos, mas que possuem uma longa e notável carreira política). No entanto, esse tipo de conduta não atrai o brasileiro médio, indignado e cansado. O pobre, trabalhador, quer chegar em casa com comida, sem ser assaltado, sem ficar cansado todo dia diante de tanta desigualdade e injustiça. O Bolsonaro, com seu populismo de direita, é um prato cheio para esse sentimento de desolação, com seus discursos inflamados e "lacradores a la direita" que conquistaram a simpatia do cidadão comum, que não tem nenhum interesse pelas pautas LGBTI, pela legalização da maconha ou do aborto, quando não consegue pagar o transporte escolar do filho para a escola ou que não ser roubado quando acabou de comprar um celular novo. O cidadão comum, que mora na periferia e convive diariamente com o crime, não se importa se seu candidato é machista, homofóbico e intolerante. Ele quer um presidente que o ajude a pagar as contas, a comprar remédios e que combata a violência. Nesse cenário, a oposição de Bolsonaro não pode se resumir a chamar seus apoiadores de fascistas e de associa-lo à todas as malezas imperdoáveis. Óbvio que existem aqueles que declaram seu voto nele puramente por preconceito, ignorância, ou por flertar com o fascismo, além de outros motivos execráveis que devem também ser combatidos. Mas não é só isso. Ele tem que ser criticado em todas as suas facetas, e de todo o perigo e risco que ele representa, em todas as esferas sociais, políticas e econômicas. Os motivos de suas propostas serem questionáveis ou inaceitáveis, e quais seriam melhores alternativas e por quê. Que Direitos Humanos não é pra defender bandido, defender o direito à moradia não é invasão de propriedade privada, Bolsa Família não é esmola, desmilitarização da polícia é oferecer melhores condições de trabalho para o policial, que racismo não é vitimismo, que intervenção estatal na economia não é socialismo. É compreensível a falta de paciência em ter que argumentar em um debate de baixo nível, com alguém que se recusa a entender. No entanto, essa crítica irresponsável por parte de seus opositores parcialmente ajudou sua ascensão.

O Brasil, se rendendo à uma polarização hostil, não pode sucumbir à extremismos perigosos, seja do PT que almeja ensandecidamente recuperar seu trono do poder, ou do culto ao ódio e a intolerância propagados de um pretenso militarista conservador. Infelizmente, é o que está acontecendo, e Bolsonaro está na iminência da presidência, cobrindo com uma camada de véu ainda mais escura o futuro do país. E mesmo os mais fortes argumentos, fatos e dados são ignorados ao ouvido de seu apoiador cego. Aqueles que acabam caindo na armadilha enviesada de enaltecer seu candidato, usam os mesmos silogismos falaciosos para atacar candidatos adversários. E nesse esforço em tentar defendê-lo, as mais absurdas desculpas e malabarismos lógicos são criados para sustentar uma conclusão cujas premissas não a suportam: a de que Bolsonaro precisa ser presidente. O viés se torna tão forte que a realidade, o ceticismo e o senso crítico são jogados pela janela, tudo isso em prol de uma esperança confortável depositada nas promessas vazias de um suposto salvador da pátria.