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24/03/2015

Eu voltei

 É fácil para um homem perder a sanidade quando não há mais nada que ele possa perder. O emprego, o carro, a casa, e por fim, a mulher e filhos. E tudo por causa de alguns cretinos que não mereciam o oxigênio desse planeta.

 Quando um homem perde tudo, ele as tenta recuperar, engole suas lágrimas, batalha por uma guerra ainda não perdida, e luta de cabeça erguida para recuperar o que é seu. Mas quando um homem perde até mesmo sua dignidade, e o último lapso de seu orgulho é rasgado de sua pele, o que lhe resta? As garrafas de uísque não servem mais. O charuto não inibe a dor e as prostitutas já são todas descartáveis. Matar não é mais uma questão de vingança, e sim um mero entretenimento.

 Eu virei psicopata? Ou apenas sempre fui um?

 Ahh isso não importa agora.

 O primeiro filho da puta que eu mandei comer capim pela raiz me fez sorrir até onda não haviam mais dentes. Ele tinha um belo coturno e as minhas botas já estavam deterioradas, e eu mal tinha dinheiro pra pagar a conta naquele bar medíocre. O que eu estava fazendo lá? Eu não me lembro. Mas ele era um deles. Eu tinha certeza!

 Esperei até o sujeito sair daquela porra de reduto para fracassados e errantes inúteis. Não me lembro como paguei toda aquela quantidade de Jack Daniels afetando meu cérebro, mas me lembro muito bem de ter arrastado o infeliz pro beco da esquina e enfiado o punhal repetidas vezes na jugular dele.

 Minha jaqueta não manchou muito, mas eu precisei lavar meu coturno novo cinco vezes pra tirar todo o sangue.

 Pensei que ficaria assustado ou que a polícia me pegaria em breve, mas ninguém sentiria empatia ou saudades daquele bastardo. Era um degenerado com um pé no inferno. Eu apenas coloquei o outro pé dele.

 Meu segundo assassinato não demorou muito. Eu estava disposto a matar qualquer cretino que se metesse no meu caminho. Foi em uma de minhas andanças a esmo, durante uma garoa fina de um céu introspectivo e negro. Eu não tinha mais dinheiro para pagar as prostitutas. Só tinha uma garrafa já vazia de pura aguardente e a merda da coceira se espalhando pelo corpo inteiro implorando por um maldito cigarro.

 A mente e a razão esvaecem, e quando menos noto preciso sair correndo daquela calçada mal iluminada e deserta, onde escorre uma poça de sangue. Dessa vez o azarado que eu mandei pro purgatório com meus punhos não era um deles, mas o filho da puta deve ter merecido. De algum modo, ele foi primordial pra eu achar o próximo alvo da minha lista de sentenciados.

 O meu eu sóbrio já estava morto há tempos, então só me lembro de estar chutando a porta de um bar fedorento nas esquinas do inferno com meu coturno novo e esmurrando o primeiro arrombado que cruzasse meu caminho. Três gordos perdedores fedendo a merda de gato jaziam no chão com os cacos de vidro das garrafas de cerveja que enfiei em seus rostos barbudos e repugnantes. Não tive tempo de me desviar da pancada no crânio que levei. O taco de sinuca nas mãos de um dos cinco homens quebrou-se ao meio em cima da minha cabeça. O segundo tentou me enforcar, mas isso não me impediu de continuar mandando mais alguns corpos pra pilhagem. Me livrei dos dois e nocauteei o terceiro esmagando o cérebro inútil dele contra a parede de tijolos daquele muquifo de fim de mundo. Apaguei o quarto com uma testada bruta no nariz.

 Não tive a mesma sorte com o quinto homem... Desgraçado! Com um soco inglês, o corno! E era um deles! Tentei revidar e me reerguer, acertando um gancho no queixo dele, mas era tarde. Meu resquício de consciência morto pelo álcool me fez desabar no piso por alguns segundos, mas quando me reergui o viado já tinha ido embora.

 Devo ter acordado alguns dias mais tarde em algum lixeira há algumas quadras dali. Nesse intervalo de tempo devo ter dado o fim à mais alguns infelizes... não me lembro perfeitamente.

  Por que me deixariam vivo? Que tolo engano.

 Um mendigo me colocou sentado e perguntou se eu estava bem. Meu corpo inteiro doía e meus hematomas estavam por toda parte, mas isso não me impediu de deixar o mendigo com alguns hematomas também. Saí dali o mais rápido possível.

 Onde eu tinha deixado meu carro? Nahh que se foda... nem sabia mais quem eu mesmo era. O álcool era o único combustível que queimava minha sede por matança. E teria sido somente uma questão de tempo até eu achar e esganar o condenado... embora eu não soubesse exatamente quem fosse. Eu acho que já estava indo longe demais...

 Cheguei no motoclube do velho João, onde pude me banhar e roubar algumas doses de licor, como um irmão distante que acabara de chegar. Desfrutei de algumas horas da agradável Stefany, a puta mais carinhosa daquele cabaré, e amiga de antigos tempos. Uni o útil ao agradável e reuni informações valiosas dela. O filho da puta que me nocauteou com o soco inglês era um dos capangas do miserável Jader Andolino, quem em breve eu iria me encontrar. Jader costumava frequentar o bar do Bin Laden e estuprar garotas que ousavam se aventurar por aquele limbo de repugnância.

 Stefany disse que ele estaria lá na noite seguinte. Sabendo que Jader sempre andava armado, ela providenciou com o velho João a "segurança" necessária para eu ter um papinho com ele na "área de fumantes".

 O bar do Bin Laden era sempre frequentado por beberrões assassinos, então era o lugar perfeito para um extraviado como eu. Já em estado de embriaguez - e não me lembro o porquê -, o sujeito do meu lado estava desmaiado no chão de ureia com a cabeçada que eu dei em seu nariz. Não sei o que ele fez para merecer aquilo. Não diria que ele era "inocente"; somos todos culpados nessa merda de vida.

 Jader Andolino não sabia que exalava suas últimas respirações, assim como eu não sabia que bebia uma das minhas últimas doses de Jack Daniels. Eu o encarava do balcão do bar, apenas esperando Stefany chegar ao seu lado, como uma velha amiga colorida. Eu podia ver dali o coldre de Jader. Era um deles! Meus nervos tremiam para não sacar meu revólver e fuzilá-lo, então apenas me restava imaginar arrancando seus olhos ali, bem na frente de todo mundo.

 Meu crânio ainda latejava de dor, e mesmo o cigarro não amenizava. Era uma dor mais profunda, pior do que de todas as pancadas que levei dos tacos e do soco inglês daquele filho da puta sentado logo ali na frente, mal sabendo que ele sorria para a morte. Stefany se aproximou dele amistosamente, exibindo seu sorriso encantador e ocultando perfeitamente sua Colt 45 no coldre em baixo de sua mini saia. Que pernas!

 Já haviam se passado... quanto tempo? Eu não faço a mínima ideia. Stefany fez o sinal que havíamos combinado no motoclube. Os dois saíram acompanhados, em direção à saída, e como num jogo teatral, Stefany fingiu que me reconheceu como um amigo que há muito não via. Disfarçadamente, se aproximou de mim junto a ele para me cumprimentar, me apresentando ao meu "novo camarada".

 Após um breve papo, combinamos de ir para a "área de fumantes". Stefany se posicionou ao meu lado, e Jader seguiu a frente. Assim que Andolino entrou na "área de fumantes", seu rosto virou para nossa direção e teve um beijo roubado pela sola do meu coturno recém adquirido. O impacto foi forte, e o bastardo foi arremessado, o que teria sido uma cena engraçada se não eu estivesse possesso pela fúria.

 Stefany trancou a porta.

 Estirado no chão, meu peso caiu sobre o corpo frágil e ridículo de Andolino com um golpe certeiro logo no meio de sua face imoral, pedindo clemência para um ser impiedoso que despejava toda a força dos braços para amassar seus ossos.

 "Faça as perguntas antes que ele engula os próprios dentes e não consiga mais falar" disse Stefany para mim.

 Me levantei e apontei meu revólver emprestado do velho João para o fucinho de Jader, proclamando: "É melhor que me dê respostas, Andolino, ou você será carregado daqui direto para a sua cova!"

 Andolino deu um sorriso febril, ainda recuperando o fôlego que foi tirado dos meus socos.

 "Você quem está cavando sua própria cova! Você acha que isso foi um complô? hahaha... você foi vítima da sua própria loucura! Teceu seu próprio destino fadado à morte trágica e à solidão... seu verme! Eu e meu pai apenas o colocamos em seu devido lugar, mas você não aprende... Por que acha que foi demitido de seu emprego, perdeu tudo o que tinha e foi abandonado pela sua mulher e pelos seus filhos?"

 Toda a raiva, o desespero, a ira e o ódio se uniram em um grande acesso de cósmica fúria, e um turbilhão de nervos me fez berrar somente um categórico "Vai se fuder, seu filho da puta!!!" e engatilhar meu revólver apontado para a testa de Jader.

 Houve um eco do disparo por todo o bar, e um gemido rouco de dor saiu de pulmões perfurados pela bala da Colt 45 da Stefany. A filha da puta nem ao menos me explicou o por quê ter me traído desse jeito tão sujo!

 O sangue descia pelo meu corpo e manchava toda a minha roupa. Meu coturno já manchado fora banhado em poça vermelha, e Stefany destrancou a porta da "área de fumantes" e eles entraram.

 Eram eles! Eram todos eles (os que restaram vivos). Estava também o velho João...

 Ninguém arma uma armadilha pra mim! Stefany, aquela vagabunda... deve ter sido feita de bode expiatório para o velho João, que sorriu para mim ao ver seus planos darem certo, sejam lá quais tenham sido. Ele deve ter sorrido por longos quinze anos, tempo que eu passei em cana. Teria passado menos, se eu não tivesse afogado um policial na privada cheia de bosta e arrancado a orelha do meu "companheiro" de cela. O viado ficava olhando pra mim como se quisesse sugar minha alma.

 Todo a estirpe de Jader me abandonou sangrando naquele chão imundo. Me disseram algumas coisas sobre "os direitos de propriedade dos terrenos" e "o comércio de enxofre", mas nesse momento eu estava anestesiado pelo álcool e a bala nem doía mais. Eu nem ao menos me importava ali se eu iria morrer ou não... quando se é traído por uma prostituta, não dá pra se surpreender com mais nada.

 Chamaram a ambulância que em seguida me encaminhou até a delegacia de polícia, onde me mandaram à prisão. Eles já estavam me procurando antes mesmo do meu primeiro assassinato... antes mesmo de eu ter perdido meu emprego. Jader já sabia disso!

 Eu aguentei todas as sessões na solitária e as torturas aleatórias que os policiais corruptos e nojentos combinavam para me dar. As quatro tentativas falhas de escapatória devem ter ajudado na motivação deles em me bater...

 ...Até o dia em que eu fui solto. "Você cumpriu sua sentença e está livre para ir", me disseram. Grande bosta... nunca me livrarei da minha real sentença. A sentença de sofrimento eterno em busca de uma vingança que jamais será alcançada, mesmo através das inúmeras mortes que causei durante todo meu percurso.

 Mas a minha busca não está acabada. Meu objetivo ainda vive, sendo mastigado pela fome da minha ira. Porque quando um homem perde tudo, só lhe resta perder a sanidade.

 Eu voltei, seus filhos da puta. Estou indo atrás de vocês... Estou precisando de um coturno novo.