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11/04/2013

Segredo sagrado


 Ciganas, mulheres que não choraram, feiticeiras, judias, hereges. Todos aqueles que agiam em desacordo com os dogmas da igreja. Homossexuais, blasfemadores, protestantes, bígamos. Todos sendo queimados. Há anos sendo inquisidor, realizando o ofício de meu Deus, o único e absoluto. Enviando a alma daqueles infiéis para o soberano do submundo desde 1557, não tenho mais certeza se estou plenamente de acordo.

 Há tanto tempo lutando contra a heresia, muitas bruxas eu já condenara. Todos eles eram realmente bruxos e hereges? Suas condenações foram justas?

 Não sei se é sinal divino ou criação maligna de Lúcifer. Apenas parece que estou perdendo minha sanidade. Fiz coisas que não deveria saber. Não quero mais levantar ao acordar pela manhã. Sei de coisas que deveria desconhecer. Atos que, sem dubiedade, já cedem minha alma á agonia das chamas infernais. O amor que eu tinha no começo, em acusar e julgar bruxas e satanistas, nos últimos tempos, só me trouxe desgosto e um estranho sentimento infeliz. Depressão, talvez?

 O que está aconteceu comigo? Por que tanto desprazer? O que fiz? Tantas histórias presenciei, tantos sigilos tenho. O que me trouxe onde estou agora é o que chamo de "segredo sagrado".

 Poucos meses atrás. "Jeanne Rodriguez, estás sendo acusada de bruxaria perante a corte religiosa. Como você se julga?" assim proclamava eu, perante o altar. A acusada, em prantos, respondia "eu sou inocente! Eu nunca fiz mal a ninguém!". Foi dada a ela uma chance de sobrevivência caso ela delatasse alguma outra bruxa, para esta também ser condenada. Propôs então Jeanne:
 - Apenas posso acusar a tal bruxa se ficarmos a sós, inquisidor.
 - Mas que papo tolo é este, bruxa? - assim disse eu, impaciente.
A acusada não se fez de rogada e prontamente explicou com palavras fajutas, mas que me convenceram. Embora tenham objetado, proclamando "Êxodo 22,18: Não deixarás viver a feiticeira", lá estava eu, com a suposta bruxa, em privado, quando ela abre o jogo. Sem cerimônia, ela começou a se jogar pra cima de mim, com tal promiscuidade que, eu, absinto de prazeres sexuais, não deixei de resistir. "Exorcize a bruxa, Juan Guerrera, queima-me na fogueira", assim dizia Jeanne, despindo-se. Após consumado o ato do coito, fui ameaçado:
 - Sou inocente de bruxaria, e você também é inocente em ter copulado comigo. Vamos manter assim, pode ser?
 - Blasfemadora, feiticeira! - protestei, embora nem eu acreditasse nas minhas palavras.
 - Conto com a sua palavra. - assim escapou Jeanne, da acusação de bruxaria, onde fui obrigado á acusá-la de inocente.

 Esse ainda não é, no entanto, o "segredo sagrado". Foi somente como ele começara.

 No prosseguimento do julgamento, ela foi liberta. Questionado pelos arcebispos e demais inquisidores, retruco:
 - Não se preocupem com nada. Eu mesmo encarrego-me de buscar o vitimizado. E ela não era bruxa de qualquer jeito. - respondi, de forma vaga e um tanto distante. Imediatamente parti em busca de Jeanne. Alguma coisa me fez ir rumo a ela. Apenas posso estar possuído pelo demônio, mas sei que não é isso. Algo me domina. Preciso vê-la. Procuro-a pela cálida tarde ao redor do vilarejo, perguntando aos moradores da região. Já cansado, franzindo a testa enquanto transpiro debaixo da forte onda de raios solares, consigo enfim as coordenadas da morada de Jeanne.

 Encontro-me diante de sua porta, e em instantes, lá está ela. Minha aura acende pelo lampejo de sua presença. Rudemente, ela pergunta "O que o senhor deseja?". Respondo-lhe, mesmo impondo-me à todas as minhas convicções e ao Senhor, declaro meu desejo por ela. Talvez aquele acontecimento sexual mexera com minhas emoções. Queria-a. E assim fazia questão de objetivar, pois por dias e dias fui-lhe até a porta para que me concebesse uma chance. Até que um dia ela não fechou a porta brutalmente em fúria, muito pelo inverso. Começou a sorrir. E agarrei-a, saboreando seus lindos lábios, em volúpia.

 Nosso amor, por muito tempo, fora recíproco. Todavia, um dia ela adoeceu.

 Sem pestanejar, fui a mando dela ao bosque, seguindo suas instruções, em busca da cura. Até que deparei-me estar envolvido no tão terrível segredo. Oh, meu Deus! Eu estava tão abalado em estar traindo a mim mesmo, a Deus. Por que eu apenas não rezara? No entanto, estava me sentindo tão vivo! Estava extasiado. Eram emoções opostas. Queria apenas salvar minha amada. E finalmente cedi à blasfêmia. Sou completamente um herege, um hipócrita, traindo ao Pai. Estava oficialmente tornando-me um bruxo! Tudo em nome da insana paixão, onde faria qualquer coisa para trazer saúde e vigor de volta para minha angelical Jeanne. Colhi as plantas e ervas necessárias, reuni os ingredientes demandados e realizei a poção de cura, em meio ao jardim. Tudo conforme seus ensinamentos.

 Porém, agora, amarrado a esta tábua de madeira no altar, nada mais me resta do que remorso. A heresia reinou perante meu coração cego, e não adianta negar nada mais, apenas me render ao tormento eterno. Agora tudo é inútil.

 Ciganas, homossexuais, blasfemadores. Há anos, todos os dias, alguns tiveram sua vez. Hoje a vez é minha. Sou o próximo a ir a julgamento. Fui flagrado e capturado no bosque, após terminado o preparo do remédio. Eles observavam o segredo tudo desde o começo, escondidos sob os arbustos. Estavam lá a mando de Jeanne. Deveria eu desconfiar de sua farsa desde o começo. Pelo o menos ela também está sendo julgada. Por outro inquisidor, de certo. Agradeço ao desconfiado Sanchez, amigo cardeal que a capturou também. Nunca deveria ter confiado naquela suja e traiçoeira bruxa Jeanne. Ei de reencontrá-la em breve, nas flamas agonizantes e incessantes do inferno.